Limites esgarçados


Maria Avelina Fuhro Gastal

De início as tentativas foram caseiras. Passei a considerar a seriedade quando, por três dias seguidos, não estiquei os lençóis pela manhã nem mesmo disfarcei a cama desfeita. Na noite do quinto para o sexto dia, não consegui dormir de tanta dor. Mesmo assim, esperei mais dois dias até enfrentar meu medo maior: buscar um serviço de emergência em um hospital. A dor já se espalhara por toda a mão.

Encaminhada direto para emergência cirúrgica, saí de lá com um dreno no dedo médio da mão direita, indicação de curativos diários no hospital e a receita de um antibiótico por dez dias. No terceiro curativo, a necessidade de aprofundar a colocação do dreno e associar mais um antibiótico, pois a infecção não estava cedendo como o esperado.

Foram dez dias de dreno no dedo, curativos diários e estômago ardendo pela medicação que também incluía analgésico a cada seis horas. Mão direita na tipoia, com bolsa de água quente em volta por, pelo menos, oito vezes ao dia.

Lavar os cabelos e a louça apena com a mão esquerda tornou-se meu desafio. Suportei a cama desfeita, a impossibilidade de escrever, o impedimento de atividade física por orientação médica. Enfrentei o pânico diário de ter que entrar em um hospital. Há seis dias fui pela última vez, retirei o dreno, recebi orientações de como fazer o curativo em casa. Não fui contaminada pelo Coronavírus.

Minha absurda tolerância à dor associada ao temor da Covid acabou complicando aquilo que poderia ter sido simples e me expondo com mais frequência ao ambiente hospitalar.

Sem atividade física, sem conseguir escrever, com dificuldades para tarefas simples já que a mão direita é a minha dominante, sem nenhuma paciência para ler ou assistir a filmes o dia todo, restou-me pensar o quanto esgarçamos nossos limites para fazer caber o inaceitável.

Tolerar frustrações, diferenças de pensamento e de posições ideológicas faz parte do amadurecimento pessoal e do jogo democrático. Colocar nesse espectro pessoas que apoiam o recrudescimento de atitudes violentas e de comportamentos preconceituosos, o discurso de ameaças e desrespeito às instituições democráticas é tentar fazer caber na minha vida aquilo que não tem, nem quero que tenha, espaço.

Memórias afetivas vinham impedindo o rompimento. Elas que fiquem no passado. Não expandirei mais em um milímetro minha intolerância à perversidade. Desconheço no presente algumas pessoas. Ou deram a conhecer a sua essência. Não as quero perto de mim. Apago comentários, ignoro mensagens. Jamais seria próxima de nazistas, fascistas, racistas, apoiadores da ditadura e da tortura, homofóbicos ou de defensores da eugenia, então, não posso permitir que haja espaço na minha vida para eles.

Direita, esquerda, centro, comunista, capitalista, neoliberal, anarquista são bem-vindos. A diversidade não me assusta, a perversidade sim.

Por alguns dias, temi perder o dedo. Não temo perder amigos, ficarei livre de perversos infectados e destruidores. Não tolerarei o inaceitável que me impeça uma vida plena. Tolerância demasiada associada a temor desmedido agrava o risco.


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Maria Avelina Fuhro Gastal

E-mail: avelinagastal@hotmail.com

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