No breu, partículas de luz


Maria Avelina Fuhro Gastal

Desde quinta-feira penso neste domingo. Não que ele tivesse possibilidade de ser diferente de todos os outros a partir do início da pandemia, mas porque me comprometi, comigo e com vocês, a ser leve nas crônicas de domingos.

Como brincar se estamos tão devastados? A falta não é de “inspiração”, mas de motivos para colorir em tons pasteis a realidade cinzenta que nos cerca.

No sábado fui, de carro, até o centro da cidade buscar um livro que ganhei em um sorteio. Fiz o trajeto que por trinta anos repeti para ir da minha casa ao trabalho. Mas não era a mesma cidade. Ou não era a mesma eu que o percorria.

Poderia falar de uma nova Vasco Alves que enxerguei ao usá-la para chegar à Rua dos Andradas até acessar a Rua Siqueira Campos, usando a Rua General Portinho. Ou descrever minhas memórias daquele entorno.

Na Vasco Alves moravam tios e primos paternos bem próximos a nós. Do apartamento que ocupavam da minha infância ao final da adolescência, lembro de duas cadeiras de cinema em uma peça repleta de livros e jornais. Meu tio era crítico de cinema, para mim, o próprio Carlitos. Minha tia fazia um bolo com fios de ovos na cobertura, massa molhadinha, recheado com passas de uvas graúdas, sem caroço. Nunca mais comi outro igual. Naquela rua entrei um Ano Novo abraçada a um poste, provavelmente alguma simpatia para alcançar algum desejo, não lembro qual.

A Rua das Andradas foi meu primeiro endereço em Porto Alegre aos seis meses de idade. Nela tive mais três endereços, em momentos diferentes da vida. Passei apenas pelo segundo deles, no número 505, Edifício Luxor, dos meus três aos oito anos. Não olhei o número para colocar na crônica, nem sabia que ele estaria nela. Nunca esqueci. Não só por ter sido o primeiro endereço que aprendi, mas, principalmente porque nele estão as minhas primeiras lembranças. O arco entre as salas, o quarto dividido com o meu irmão, as visitas da vó e tias que se hospedavam conosco quando vinham de Pelotas, minha mesinha com tampa de lousa, o João bobo do Edmundo, a Margarida cozinhando sopa de feijão no inverno, a primeira amiga, Maria do Carmo, que morava no andar de cima.

Na General Portinho morava uma tia paterna. Lembro da minha mãe e tias reunidas em uma sala, conversando, eu muito pequena, sentada no chão, segurando uma tesoura, e elas, alternadamente, despejando uma caixa de alfinetes na minha frente para que eu usasse a tesoura como ímã para recolhê-los. Repetidas vezes.

O prédio onde eu tinha que pegar o livro na Siqueira Campos era o mesmo em que morava uma colega minha dos tempos de colégio, situado ao lado da garagem onde meu pai guardava o primeiro carro da família, um fusca verde calcinha. Dali íamos a pé para casa, passando pela travessa em frente ao, então, Hotel Majestic, ainda moradia de Mario Quintana.

Poderia, também, ignorar o trajeto que fiz e falar da presença do Centro da cidade em minha vida, mesmo depois que deixei de morar nele, aos 17 anos. Diversos endereços na Rua dos Andradas, muitas praças, cinemas e escolas, amigos que estudavam no mesmo colégio e moravam no Centro, colegas e amigos do meu irmão que se reuniam na nossa casa para jogar ping-pong, ouvir música, jogar dorminhoco, war e jogo do sério. Primeiro e segundo namorados moradores do Centro da cidade. Trinta anos de trabalho na Rua Duque de Caxias, atravessando a Praça da Matriz nas diferentes estações do ano.

Cada parágrafo acima tem potencial para uma crônica leve, saudosista ou divertida. As melancólicas, não publicaria em um domingo. De comum, além do Centro, a presença de pessoas. Familiares, colegas de colégio, amigos, namorado, colegas de trabalho, pessoas desconhecidas que apenas transitavam por ali, comporiam a alma da narrativa. A vida acontece nas trocas que fazemos com os outros.

Nossas trocas têm se limitado a telas e redes sociais. A presença física virou risco. Quanto maior a proximidade, maior a ameaça. A distância de quem amamos é a forma que encontramos de proteger a quem não imaginamos viver sem.

Mesmo com a certeza de que tenho cuidado daqueles que amo, sofro com as perdas de tantos. Cada um dos mortos pela Covid-19 era o amor de alguém. Não precisamos sentir a mesma dor para entender o quanto ela deve ser dilacerante para quem a vive.

Não dá para ser leve, divertida em um domingo tão próximo às mortes por asfixia, em Manaus. Morreram, ou podem morrer, pacientes de Covid, bebês prematuros que precisam de suporte de oxigênio pois os pulmões ainda não se desenvolveram o suficiente para garantir a respiração, pacientes com outras doenças ou traumas.

Colapso do Sistema de Saúde é a impossibilidade material, humana e de recursos para dar suporte à vida. Colapso social é a indiferença ao que vem acontecendo no Brasil. Colapso moral é buscar justificativas para defender a perversidade.

Não estamos à deriva. Estamos sendo conduzidos ao extermínio. Como nas câmaras de gás do nazismo, asfixiados. Se lá não houvesse subordinados para executar as ordens perversas e absurdas, os campos de concentração não teriam matado tantos. Se aqui não tivéssemos tantos para: obedecer a ordens perversas de utilização de kit de tratamento precoce, sem comprovação científica, abandonar o uso de máscara e o distanciamento social, medidas de prevenção com comprovação científica, muitas vidas teriam sido poupadas.

Para alguns não faz diferença, desde que não seja ele o asfixiado.

Alguns assassinos sentem culpa. Outros, não.



Depois da crônica escrita, aprovado pela Anvisa o uso das vacinas Coronavac e Oxford, em caráter emergencial, no Brasil. Primeira pessoa vacinada no Brasil, em São Paulo. Chegamos no dia D, na hora H.
O primeiro domingo do que pode ser o princípio de esperança de voltarmos a ter vida fora de casa e próxima a outras pessoas.
Para podermos respirar, suplicamos às autoridades brasileiras celeridade na aquisição e distribuição das vacinas. Confiar neles para ações contra a pandemia é difícil, pois a maior competência tem sido fazer nada, confundir a população, atacar quem tenta fazer ou procurar culpados para suas mentiras
Temos muito a avançar. Só conseguiremos se estivermos vivos.


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Maria Avelina Fuhro Gastal

E-mail: avelinagastal@hotmail.com

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