Trevas


Maria Avelina Fuhro Gastal

Antes de continuar lendo, saiba que não garanto nem clareza nem coerência no que escreverei.

Tudo teve início na quarta-feira, dia 15 de janeiro, quando o temporal me deixou sem luz. Por 30 horas. Se o camarão no freezer não foi afetado, não posso dizer o mesmo sobre as minhas convicções e sanidade.

A luz faltou no exato momento que iria recarregar meu celular. Restavam trinta e sete por cento de bateria. Considerando que o meu telefone fixo só funciona quando há eletricidade, decidi poupar a bateria do celular. Então, sem jogar, sem entrar nas redes sociais, sem me comunicar por whats app, sem qualquer contato com outro humano (ou até mesmo com índios). Moro sozinha. Não tinha com quem conversar, nem para quem reclamar.

Aproveitei enquanto tinha luz natural, sentei-me próximo à janela e fiquei lendo Do que é feito a maçã, de Amós Oz com Shira Hadad. Refleti, discordei, concordei, me surpreendi, mas saí inteira. Quando começou a escurecer, a janela não era mais opção.

Comer algo? Seria lógico, já que eram quase oito horas. Sem luz, sem micro-ondas. Vamos de fogão. Meu fogão acende por faísca gerada por... eletricidade. Sem faísca, vamos de fósforo. Na única caixa que eu tinha, havia um único palito de fósforo. Decidi guardar para uma emergência. Não me perguntem qual, pois ali meu cérebro já estava dando sinais de pane. Tudo bem, salada não precisa esquentar e, além de tudo, não engorda.

Terminada a salada, continuava a escuridão. Peguei o kindle. Por estranha coincidência, trinta e sete por cento de bateria. Deveria ter jogado no bicho. Resolvi ler o quanto desse. Retomei a leitura de Clarice Lispector, A paixão segundo GH.

Imaginem: escuridão, solidão, nenhuma chance de contato com o mundo externo, Clarice Lispector, e a possibilidade de haver baratas que eu não iria enxergar. Minha ansiedade aumentou um pouco. Fui, literalmente, me afundando no texto e mergulhando na minha vida. Afinal, quais eram mesmo as minhas convicções? Vivo sozinha por escolha, por medo ou por covardia? Alguém não vive só? Quem habita em mim? Que vozes me impelem a fazer escolhas que nem tenho certeza se seriam as minhas? O que haveria em mim em total escuridão que nem mesmo sei que existe? E por aí foi. Sempre pensando nas baratas que poderiam estar me rodeando, rindo da minha aflição.

O pensamento nas baratas me fez lembrar que eu tinha uma lanterna. E, graças a minha mania de organização, sabia exatamente onde estava. Assim como sabia que as mesmas pilhas estavam nela há mais de 4 anos. Ficaria para emergência. De novo, não sei qual.

Minhas opções estavam acabando. Decidi tomar um banho. Por sorte, quente, pois meu junker é antigo e eu havia trocado a pilha em outubro. Sem ventilador de teto ou ar condicionado, o mais coerente seria dormir só de calcinha. Mas, se eu precisasse sair correndo (de novo a tal da emergência desconhecida, mas tangível), não acharia a roupa para vestir. Deitei de bermuda e top. Minimamente adequada para uma saída às pressas. E naqueles turbilhões de pensamentos em que nada faz sentido e tudo parece catastrófico, me dei conta que não teria como sair do edifício. O controle da garagem não funcionaria, o Tag dos portões também não. Nem mesmo conseguiria falar com aquela entidade remota que controla todas as entradas e saídas do meu prédio. Não preciso dizer como estava minha ansiedade nesse momento. Mesmo assim, só me restava tentar dormir e acordar com a luz do dia.

Acordei pela primeira vez às 2 horas. Escuro. Adormeci de novo. Acordei pela segunda, e derradeira vez, às 4 horas. De escuro a lusco fusco. Mas não consegui dormir mais. Da luz? Nem sinal.

Tão logo fez-se dia, saí munida com o que precisaria para sobreviver a um período mais prolongado de trevas, celular e carregador, kindle e carregador. A cada parada, uma carga em ambos. Até mesmo no barzinho com amigas à noite, meu celular manteve-se ligado à energia. Cada carga valia ouro. Cada tomada operante me levava ao êxtase.

Voltei para casa quase onze da noite. Toda a rua iluminada, com exceção da minha quadra. Meu humor azedou de vez. Pensei no camarão no freezer, nas baratas pela casa, no silêncio, na Clarice. Quase surtei. Durou pouco e voltou a luz. Abri o freezer, toquei no camarão, preservado. Vasculhei cantos e frestas, sem baratas. Liguei a TV e o silêncio foi quebrado. Deixei a Clarice para lá e usei o whats app. Deitei e li com a luz de cabeceira acesa. Joguei candy crush. Parecia que tudo havia voltado ao normal.

Mas hoje já não tenho tanta certeza. Clarice me sacudiu. Não dá para jogar de volta à escuridão o que veio para o foco.

Além dela, ou talvez em função dela, tenho tido pesadelos. O problema é que parecem reais. Às vezes ouço discursos nazistas. Em outras vezes, os índios aparecem como bichos, sendo transformados em humanos por uma besta que parece bicho. E, bem ao fundo, escuto vozes dizendo que a pobreza é responsável pelos danos ao meio ambiente, ou que a liberdade de expressão tem limites. De dois dias para cá, ouço a expressão abstinência sexual como programa de governo. Devo estar enlouquecendo.

Essa experiência me trouxe duas certezas; a primeira é de que não sei viver no escuro; a segunda é de que não quero viver nas trevas. Com relação à primeira, tenho como aprender a viver, ou, pelo menos, aprender a suportar. Mas com relação à segunda, me nego a aceitar viver com tal insanidade.



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Maria Avelina Fuhro Gastal

E-mail: avelinagastal@hotmail.com

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