Dez dias, seis décadas


Maria Avelina Fuhro Gastal

Em dez dias, uma vida em retrospectiva.

Entre o dia do idoso, 1º de outubro, e o dia da criança, 12 de outubro, uma década para cada dia. Tão rápido quanto passam os anos. De repente, estamos velhos, sem nem saber quando aconteceu.

Em um momento qualquer, deparamos com a imagem de nossos pais no espelho. Estão nas rugas ao redor dos olhos, nas entradas em que até ontem havia uma vasta cabeleira, na quantidade de fios de cabelos grisalhos misturados a outros que já não têm cor definida, na linha do queixo que teima em se juntar com a pele do pescoço, nas orelhas que parecem ter crescido obedecendo à lei da gravidade.

Há pouco tempo estávamos brincando de bonecas, de forte apache, jogando botão, vôlei ou peteca. Descobríamos as letras, juntávamos em palavras, ensaiávamos histórias curtas que nos exigiam muito esforço. Logo depois, descobríamos que o coração acelerava, as mãos suavam, a boca secava, o tempo parava e, ao mesmo tempo, galopava na presença de alguém que nos fez dar adeus definitivo à infância.

Lutávamos contra espinhas, vozes esganiçadas, sentimento de inadequação, desilusões e perda do amor que julgávamos para sempre. Alguns empilharam amores eternos, outros foram comedidos. Escolhas nos empurravam para o futuro. Decidíamos profissão, companhia para a vida, quando na realidade foram para uma fase dela, enfrentávamos a concorrência por vaga na universidade, no emprego, no coração de alguém.

Levantávamo-nos após madrugadas insones embalando, amamentando, medicando os filhos que passaram a ser as crianças daquele momento da vida. Continuamos insones esperando a hora de buscar na festa, de ouvir o portão da garagem abrindo e a chave girando na porta anunciando o fim de uma noite de temores e incertezas. Presenciávamos a luta deles contra espinhas, vozes esganiçadas, sentimento de inadequação, desilusões e perda do amor que julgavam para sempre.

Alcançaram o futuro, decidiram profissões, companheiros e trouxeram crianças para nossas vidas. Avós, observamos o recomeço do ciclo, onde o nosso lugar, agora, é o da extremidade final.

A vida teima em não seguir o roteiro que traçamos. Surpreende-nos com finais inesperados, com a desconstrução de sonhos e com a implosão das certezas.

Sepultamos quereres, amores, sonhos.


Em nós, habitam todas as fases e histórias vividas. Revisitemos as saudades sem ficar algemados ao passado.

Nem toda infância é mágica, nem toda velhice, amarga. Renego maquiagens, infância não é paraíso, velhice não é a melhor idade.

Fui velha quando jovem. Adolesci quando deveria envelhecer. Projeto objetivos, encaro desafios, tento superar crenças e limitações. Ponho a língua para o sofá e para a pantufa. Calço meus tênis e meço quilômetros percorridos. Controlo colesterol, pressão arterial e os índices de osteopenia. Trato a pele do meu rosto, hidrato o corpo. Eles respondem com a força da idade, mas eu insisto para não ser pior do que já é.

Envelhecer é da vida. Ficar velha, enquanto eu puder, luto contra. As armas não estão nas roupas, baladas, vida louca. Elas estão na decisão de viver para acompanhar os ciclos dos filhos e netos, e de ter neste período uma vida própria. Não ser espectador da aventura de viver daqueles que tem menos idade.

Precisamos, de novo, empilhar tijolos, construir outros castelos, habitar novas histórias. Se as paredes nos sufocam, mudemos a textura e as cores delas.

O tempo da vida é imprevisível. Temos certeza de que deixamos para trás mais do que temos pela frente. No entanto, estamos vivos. Morrer em vida é desleal e injusto para com os que partiram.

Em cada década vivida entre estes dez dias, muito da criança que fomos encontrou brechas para brincar. Talvez agora precisemos empurrar o carrossel com mais força, quem sabe até pedir ajuda, e se nele ficamos tontos, podemos aproveitar para tirar os pés do chão, jogar a cabeça para trás, fechar os olhos e afrouxar o controle que fixa nossa história no passado, nas perdas, no desânimo. Ideias embaralhadas possibilitam novas jogadas. A vida não tem de ser útil, tem que ser livre. Temos a chance de brincar como crianças, enfrentar desafios como adolescentes, construir outras relações, mergulhar em aventuras, sem dar explicações aos pais, muito menos aos filhos. Os limites são traçados por nós.

Já escrevi que quero morrer criança. Saberei que sou criança quando encontrar a espontaneidade para demonstrar o que sinto e, como criança, terei muito tempo para viver tudo e mais um pouco.



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Maria Avelina Fuhro Gastal

E-mail: avelinagastal@hotmail.com

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