O abate do bode


Maria Avelina Fuhro Gastal

Tal qual um peru natalino, ele foi sendo alimentado aos poucos. Às vezes com grãos, outras vezes com doses maciças de ração, carne e todo o lixo disponível. Foram anos de preparo até que tenha sido considerado pronto para o abate. Agora é a hora. A raiva, o cansaço, o desconforto e a desesperança pedem sangue. Aniquilem o bode, abram as porteiras para a trupe sedenta em transformar o que é Estado em curral partidário e ideológico.

Todos nós temos alguma queixa contra o serviço público. Toda insatisfação precisa de um rosto, uma identidade. A nossa dirige-se ao servidor público, enquanto ignora o sistema em que ele está inserido.

Misturamos estruturas de Estado com postos de Governo. Na ignorância dessa diferença, apoiamos a estratégia política de aniquilamento de cargos, direitos e garantias que visam à preservação das prerrogativas Constitucionais. Pensamos estar matando um inimigo do país, quando na realidade estamos dando carta branca à espoliação de nossos direitos e garantias.

Não nego os problemas, as distorções e a inoperância da maioria dos serviços públicos. Mas os bodes são consequência e não a causa. Pouco se questiona a falta de condições, de investimento, de qualificação, de reconhecimento, de valorização dos trabalhos desenvolvidos em condições adversas, seja por falta de recursos ou por interferências políticas que sobrepõem o interesse partidário ou eleitoral ao da sociedade.

Na construção do nosso imaginário como Nação acreditamos na força de um salvador no poder, projetando nele todos os nossos anseios, enquanto vivemos nossas vidas sem envolvimento efetivo com as pautas que deveriam ser discutidas. Esquecemos que o “salvador” representa castas, grupos econômicos, interesses internacionais, de classes sociais, posições partidárias e, também, pessoais acima das ideológicas. Também enxergamos o público como de ninguém. Limpamos nossos jardins, calçadas e carros, mas largamos o lixo nas ruas, no transporte público. Precisamos, urgentemente, entender que o público é de todos e que cabe a nós lutar pela melhoria daquilo que deveria dar acesso à totalidade da população a melhores condições de vida.

As estruturas de Estado são permanentes, independem de quem ocupa as estruturas de Governo. As competências do Estado estão previstas na Constituição, estabelecendo princípios, prerrogativas, deveres. Essas precisam ser garantidas e cumpridas em um Estado Democrático de Direito.

A proposta de Reforma Administrativa enfraquece os mecanismos de controle que representam a garantia da sociedade. O servidor público tem como dever atentar para a aplicação das regras estabelecidas pela Constituição e as dela derivadas em Regimentos Internos, Leis ordinárias, decretos e portarias. Para que possa desempenhar as suas funções, ele deve estar protegido das pressões exercidas sobre ele. A estabilidade não é prêmio, é característica essencial para a preservação da lisura na Administração Pública.

Os quadros dos Poderes Constitucionais são compostos por servidores efetivos, concursados, e por Cargos em Comissão de livre nomeação e exoneração pelo político ao qual o cargo está vinculado. Há neles essência diversa, enquanto um, concursados, serve ao Estado, o outro, Cargo em Comissão serve ao Governo. Então, por óbvio, as funções de Estado devem ser ocupadas por concursados e livre de pressões de Governo, em qualquer esfera.

Há mecanismos para punição e exoneração de servidores concursados que não cumpram com as atribuições previstas em Editais públicos dos concursos, nas estruturas administrativas de cada órgão ou Poder, nos preceitos Constitucionais e infralegais. Se não são aplicados corretamente, isso é o que deve ser discutido.

O caminho para a redução do gasto público e de atos de corrupção passa pelo fortalecimento das estruturas permanentes de Estado e sua independência frente às pressões e desmandos governamentais. Misturar Estado e Governo é abrir a porteira para o descalabro.

Precisamos de uma Reforma Administrativa? Sim. A proposta apresentada fortalece o Estado? Não. Cabe a nós como cidadãos pressionar pela melhoria na qualidade dos serviços públicos para a sociedade. Desconfie de uma proposta que tem apoio de políticos e grandes grupos econômicos, incluindo a imprensa.

Entendo o descontentamento com o serviço público. Só não entendo um povo que não tem acesso à educação, à saúde, à habitação, ao pleno emprego acreditar que abrir as porteiras do serviço público vai lhe trazer alguma melhoria de vida. Lute pelo fortalecimento do que é público, do privado eles já cuidam bastante, em benefício próprio.

Se entenderam que o bode já pode ser retirado da sala, com certeza já há mecanismos para a escolha de um novo bode que impeça o desmascaramento das engrenagens corrosivas dentro dos diversos níveis de Poder. Pode ser que seja você, mais um dos seus direitos, o seu trabalho, sua forma de pensar ou viver. Enquanto alimentarmos bodes escolhidos por eles, estaremos contribuindo para a manutenção de tudo que corrói a sociedade.

Deixe um recado para a autora

voltar

Maria Avelina Fuhro Gastal

E-mail: avelinagastal@hotmail.com

Clique aqui para seguir esta escritora


Pageviews desde agosto de 2020: 249693

Site desenvolvido pela Editora Metamorfose