Maria Avelina Fuhro Gastal
Agosto. Fama de mês do desgosto. Difícil pensar no que ainda pode ser pior do que março, abril, maio, junho e julho. Entramos no quinto mês de vida suspensa. Em cinco meses, a estação já trocou duas vezes, crianças nasceram, recém nascidos já estão quase sentando sozinhos, afetos partiram sem que pudéssemos nos despedir, ventres de gestantes ganharam volume, quilos foram eliminados, ou acumulados, cabelos curtos estão médios e os médios, longos como há muito não ficavam.
A visão macro do mundo depende da distância da nossa janela até o próximo prédio, muro ou parede. Perdemos os detalhes. Não vimos as folhas de plátanos no chão, o trabalho silencioso e contínuo das formigas, as árvores se desnudando. Da chuva vemos o conjunto, perdemos as gotas em lágrimas que se desprendem de telhados, galhos e flores. Do sol temos na pele o calor que se esgueira entre os vidros que afastam o mundo de nós.
Das ruas vem ruídos de caminhões, ônibus, carros, motos e bicicletas de entregas. As risadas, as conversas, o burburinho de crianças estão atrás das paredes e janelas das casas que não são minha.
As pessoas, os afetos, e até os desafetos, são inacessíveis. Próximos estão distantes, conhecidos tornam-se presentes nas telas em uma proximidade protegida e esvaziada de história prévia. Talvez permaneçam ou talvez voltemos a ser conhecidos com histórias comuns no isolamento.
Entramos agosto com um número maior de mortos por COVID-19 no Brasil do que o de Hiroshima no ataque com a bomba atômica. Não há sinais de que estejamos perto do fim. Os pedaços, as ruínas ainda não podem ser recolhidos. As feridas se abrem, sangram sem que ninguém consiga tratá-las sem o risco de morrer.
Daqui a pouco vem a primavera. Terão as flores que bailar suas cores apenas para os pássaros e abelhas? Não veremos as borboletas rodopiando entre o cenário de beleza? E o caleidoscópio de cores das poças de chuva banhadas pelo sol se exibirá para o espaço vazio de nós?
A primavera festeja o ano que se aproxima do fim. Estamos em um ano suspenso. Que termine. Sem festa, por respeito aos mortos, às perdas, às dores. Que seja celebrado pela superação, pelo apego à vida. E que na celebração não estejamos sós.
Este ano, tão vazio do que sempre fomos, está repleto de não:
- não abraçar,
- não beijar,
- não se reunir,
- não caminhar à toa absorvendo vida,
- não parar por um momento, entrar em um café, tomar um espresso e partir para qualquer compromisso que me nutria,
- não planejar viagens, encontros, jantares, confraternizações,
- não marcar data para se formar, se casar, festejar aniversário, lançar livro,
- não ter a chance de conhecer novas pessoas,
- não reencontrar amigos,
- não ver sorrisos,
- não se sentir na vida, mesmo vivo.
Tem nos restado estar:
- estar consigo mesmo,
- estar conectado às memórias, sem permitir que elas nos derrubem,
- estar preocupado com amores, amigos,
- estar atento aos olhos para perceber o que expressam,
- estar chocados com o descaso de quem deveria zelar pelo país,
- estar perplexos com as atitudes desumanas e egoístas que saem dos esgotos sem medo de mostrar a cara,
- estar em busca de forças para enfrentar a situação,
- estar comprometidos em não desistir.
Há dias em que o não me aniquila. Silencia o estar. Sufoca-o com cansaço, angústia, desesperança. O resgate vem no som do whatsapp, nas mensagens recebidas, nas lembranças do que me faz feliz.
Sempre amei as palavras. Muitas vezes não as usei. Calei o que sentia, contive o que desejava dizer. Neste período insano elas me salvam quando chegam em mim repletas de afeto, quando extrapolam em textos, quando cantam o que sinto ou cantam a esperança, quando me levam a histórias de outros. No silêncio da minha casa procuro todas as palavras por mim ouvidas ou lidas para estar o mais próximo possível de quem sinto falta.
Então, se escrevo e publico mais agora, tenham certeza de que é porque desejo estar muito perto de cada um de vocês. Tem um pouco de nós em cada palavra escolhida.
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