Humilhação vertical


Maria Avelina Fuhro Gastal




Talvez você já esteja criticando o título. Pleonasmo. Vai ver não estava inspirada e escreveu sem prensar. Engano seu.

Concordo que para humilhar usamos artifícios de verticalidade. Empinamos o nariz, olhamos de cima, inflamos o peito com orgulho. Tudo para mostrar ao outro que somos superiores em poder, inteligência, recursos, classe, cor da pele, posição social, gênero. Para confirmar nossa vantagem alteramos um pouco o tom de voz, mais alto quando queremos calar alguém, mais baixo quando queremos mostrar nossa polidez, silêncio total quando queremos marcar nossa indiferença à opinião, às considerações ou à presença de alguém.

Nesta crônica humilhação vertical deve ser entendida de forma literal.

Há anos temos férias em família do dia 26/12 aos primeiros dias de janeiro. Mesma praia, litoral norte, sem precisar enfrentar a BR101, mesmo condomínio.

Ao chegarmos no condomínio fomos informados que deveríamos tirar uma foto para reconhecimento facial que liberaria a cancela automaticamente para entrarmos de carro ou liberaria o portão quando estivéssemos a pé.

Foto providenciada, bagagem e mantimentos organizados, camas arrumadas saí para a minha caminhada.

Parei na frente do leitor de reconhecimento facial e, nada. Na tela aparecia somente da metade da minha testa para cima. Tá bom que ela é ampla, mas considerei desrespeitoso me mostrar isso sem que tivéssemos qualquer intimidade. Fiquei na ponta dos pés. Nada. Apesar de aparecer a linha superior das minhas sobrancelhas, não foi o suficiente para me reconhecer. Olhei em volta, nenhum banquinho, nem um degrauzinho que me fizesse ganhar os centímetros que faltavam para o reconhecimento. Pior, mais pessoas se aproximavam e eu estava prestes a ser responsável pelo primeiro congestionamento por deficiência de altura no litoral norte. Me afastei de devagar, tipo esqueci algo, fui à recepção e pedi que abrissem o portão para mim. Dali em diante saía usando a pulseira com Tag, como todas as crianças de lá.

Pelo menos de carro eu não ficaria presa na fila para identificação. Parei bem ao lado do tótem com a maldita câmera que deveria atestar que eu sou quem sou, olhei para ela e, nada. De novo minha testa. Subi um pouco o banco do carro. Nada além da linha das sobrancelhas. Tirei o cinto de segurança, cheguei o corpo para frente, carro em ponto neutro, mão direita no assento, esquerda no apoio de braço, elevei o corpo e, por fim, tive a confirmação de ser eu mesma e a cancela abriu. Operação repetida toda vez que precisava sair de carro por algum motivo. Saída e entrada.

Sei que sou baixinha, mas estou na média de altura das mulheres brasileiras, 1,60m. Talvez o meu crime seja não usar salto na praia, ter a audácia de andar de tênis ou chinelo de dedos o que me impede de chegar próxima da altura média de americanas, que teriam seus rostos reconhecidos sem problemas.

Não tenho uma SUV. Tenho um carro que não me eleva às alturas, portanto, não atinjo a posição esperada para ter meu rosto identificado como alguém que pode estar naquele condomínio.

Passei 10 dias sendo lembrada a todo o momento que eles não me consideravam à altura daquele lugar. Isso é humilhação vertical, sem pleonasmo.

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Maria Avelina Fuhro Gastal

E-mail: avelinagastal@hotmail.com

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