Maria Avelina Fuhro Gastal
Cresci com uma alma antiga. Meus pais adoravam ouvir Francisco Alves, Elizete Cardoso, Miltinho, Ray Conniff, Maysa, trilhas sonoras de filmes e bossa nova. Eu cantarolava todo o drama como se fosse cantiga de roda.
Na bossa nova fiquei. Assistia aos festivais de música na TV em preto e branco e com imagem chuviscada. Ali conheci Tom Jobim, Edu Lobo, Elis Regina, Chico Buarque, Caetano Veloso, Geraldo Vandré. Sem entender o motivo, percebia em meus pais um certo encantamento por versos que, hoje sei, falavam daquilo que não era permitido dizer.
Beatles chegaram a mim com o álbum Let it be. Passaram a existir na minha vida quando não mais existiam como banda. Abandonando a infância, incorporei ao meu gosto musical Carole King, Carly Simon, The Carpenters, James Taylor, Belchior, Os Mutantes. Roberto Carlos sempre foi passageiro, às vezes gostava em outras achava um chato.
Não houve descoberta de bandas, intérpretes, cantores ou cantoras que me fizessem abandonar a bossa nova. Entre estilos diferentes, sempre colocava no toca discos, Vinicius de Moraes.
Era ele que servia de trilha nas tardes no apartamento da Claudia ou na minha casa. Eram dele as músicas que cantávamos em duas vozes nas escadas do colégio. Era Vinicius que traduzia o amor que queríamos viver, as tardes que merecíamos ter, a forma de enfrentar os sentimentos que queríamos atingir.
Domingo, 14 de abril, me reencontrei com a adolescente que fui visitando, no Farol Santander, a exposição sobre Vinicius de Moraes, tendo como fundo a voz dele cantando ou recitando.
Tenho certeza, ou tinha, de que, pelo menos uma vez, eu assisti ao show de Vinicius e Toquinho. Se houve outras vezes, não lembro. O ano era 1974, no, então, Teatro Leopoldina. Sei que roupa eu usava, sei com quem fui ao show, lembro do Toquinho em um banco alto tocando violão e o Vinicius sentado em um banco ou cadeira baixa, tendo ao lado uma mesa onde estavam uma garrafa de uísque, um copo baixo e transparente, nunca vazio, uma carteira de cigarro. Ainda posso ver a mão dele regendo os sentimentos, ao fazer ondas suaves no ar, na lateral do seu corpo, enquanto fechava os olhos.
O problema é que na página do Toquinho ele diz que fez aquele show sozinho, pois Vinicius de Moraes estava suspenso pela censura. Quem está certo, Toquinho ou eu?
Um de nós tem uma falsa memória daquele show. Reconheço que é mais fácil acreditar na verdade dele do que na minha, apesar de ser a certa.
Falsas memórias podem ter um forte componente emocional. Momentos que geram emoções muito intensas formam memórias mais vívidas que perduram por um longo tempo, sem que necessariamente seu conteúdo seja verdadeiro.
Toquinho vivia um período tenso às voltas com a censura que impedia Vinicius de cantar em público, por um tempo. Eu fui ao show que eu queria, com quem eu queria. Tanto ele quanto eu teríamos razões para criar falsas memórias. Ele criou. Eu tenho certeza da presença de Vinicius de Moraes naquele palco.
Tenho hoje um ano a menos do que Vinicius de Moraes tinha ao morrer. Não vai ser agora que vou ter apagada a memória de um momento tão bom. Por toda a minha vida será como eu lembro. Parafraseando o poeta, que aquele momento, aquele show tenha sido infinito enquanto durou. E é nessa infinitude que lembrarei deles.
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