Maria Avelina Fuhro Gastal
Havia, nas décadas finais do século passado, uma revista de grande sucesso que trazia uma coluna denominada “Criança diz cada uma”. Adorava ler. Cada frase dita possuía uma lógica incontestável, um jeito criativo de descrever o que para nós, adultos, era trivial.
Quem convive com crianças, e está disposto a não ser apenas um adulto chato e normativo, surpreende-se com as descobertas, com os avanços, com o olhar aguçado para a realidade que os cerca e a forma como expressam suas impressões e seus sentimentos.
Há pouco mais de quarenta anos, vivi minha primeira homenagem pelo Dia da Mães na escolinha do meu filho mais velho. Havia cartazes espalhados pela salinha com perguntas respondidas pelas crianças sobre as suas mães. Qual a comida preferida da mamãe? Do que você gosta de brincar com a mamãe? Qual historinha você mais gosta que ela conte na hora de dormir? Confesso que não lembro das respostas a essas perguntas. No entanto, há uma resposta que retumba em mim até hoje: Qual a palavra que a mamãe mais diz? ─”Apura”.
Aquele “Apura” parecia estar em neon, piscando, acompanhado de um som de sirene alto, e com dedos indicadores apontando para mim. Menos de três anos de idade e minha voz estava tão alta dentro dele, sempre o apressando, sem tempo para o lúdico. Até hoje, meu timming e o do Eduardo são diferentes. Ele deixa tudo para a última hora, fico aflita que vá se atrasar. Tento evitar apurá-lo. Já provoquei danos suficientes com relação a isso.
Ainda ontem, minha filha mais moça me disse que se enxergava, hoje, como me via quando eu estava nos meus trinta e poucos anos, sempre acelerada. O apura teve nela outro efeito, mas estava presente, tanto que uma vez ela colou na minha agenda uma figurinha do coelho da Alice no país das maravilhas- tenho pressa, tenho pressa.
Renata me surpreendeu de outra forma. Em momentos mais tensos, ela me dizia que eu era “peguipi”. Virava e mexia e lá vinha o peguipi, que depois ganhou a companhia do “sua”. Olhava para mim e apenas dizia: “─Sua peguipi.” Não parecia ser bom. E não era. Descobri a gravidade da ofensa quando, certa vez, ela estava teimando e eu disse: estás sendo peguipi. Para quê? Eu a havia ofendido mortalmente. Um choro sentido e inconsolável tomou conta dos minutos seguintes. Era inimaginável ser considerada peguipi pela mãe. Preocupante ser uma mãe, por momentos, peguipi.
Há poucas semanas, voltando da escolinha com o meu neto, ele me disse que eu era “cadicati”. Todos os meus alarmes soaram, precisava percorrer o caminho com cautela e tentar entender se ser “cadicati” é bom ou ruim. Perguntei se ele era “cadicati”, também. “─Não vovó, você é”, pelo menos continuava rindo, sem nenhum sinal de ofensa. Disse que a mamãe, a mana e a Didi eram “cadicatis”. Só as meninas. Já é uma pista. E causa certo alívio saber que eu estava sendo classificada como os amores da vida dele.
Agora, escrevendo, percebo que até a sonoridade das duas palavras desconhecidas são diferentes. Peguipi sai da boca de sopetão, gancho de direita, que nos tonteia. Cadicati tem ondulação, parece dançar entre os lábios. Crianças conhecem o tom que devem dar às palavras inventadas e seguem o ritmo dos sentimentos. Miguel me resgatou do calabouço que peguipi me colocou e fez com que eu me sentisse um pirilampo.
Alice não inventa mais palavras, mas opina sobre tudo. Atenta aos mínimos detalhes, não poupa em críticas ou elogios. Em um almoço, sentada ao meu lado, olhou para mim e elogiou a minha pele. Disse que estava muito melhor, tão boa que eu parecia só ter 70 anos. Meu e filho e eu rimos, ao que ela reagiu: “─Melhor 60?”. Só fico imaginando a idade que ela me dava antes de achar que minha pele tinha melhorado.
Crianças nos desarmam, possibilitam que repensemos atitudes e que encontremos significados que vão além da palavra banal. No mundo deles está o nosso, redefinido e ampliado. Reconhecem nossos limites e correntes, tentam rompê-los. Permitirmo-nos reencontrar a criança que um dia já fomos nos aproxima de possibilidades esquecidas.
Sempre há chance de não conseguirmos entender o significado do que está sendo dito. Ontem, Miguel se despediu de mim com um beijo, sorrindo e a frase:”─Obrigado, vovó, por ir embora.” Fui. Devo rir ou chorar?
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