Prisão perpétua


Maria Avelina Fuhro Gastal





Enquanto o 20 de setembro é celebrado, em algum lugar deste nosso Rio Grande do Sul, alguma pessoa negra, talvez descendente de um Lanceiro Negro, sente na pele as nossas façanhas.


Inspirado no poema Navio Negreiro de Castro Alves

O corpo nu de Sebastião denuncia as cicatrizes de sua história.

O piso gelado alivia a sensação de fogo que transpassa seus ossos e pele. A posição fetal expõe a magreza de sua figura e a desproteção da vida.

Um líquido viscoso, avermelhado, preenche o espaço de sua boca onde deveriam estar os dentes. Há muito já perdeu a maioria para as surras ou para o destrato.

Tenta abrir os olhos, mas não consegue. Seus pensamentos misturam-se a um zumbido constante e vozes intermitentes. Não distingue o que está sendo dito, mas a aspereza dos timbres faz com que seu corpo estremeça, temendo mais violência.

Na confusão de suas ideias apenas a certeza de ter começado o dia como outro qualquer. Ainda madrugada, saiu de seu barraco para vencer a distância que o separa de sua lida diária. Uma névoa cobria o caminho e o frio da noite ainda se fazia presente. Contra a baixa temperatura, apenas uma touca herdada, os bolsos rasgados e uma manta que lhe escondia parte do rosto.

De repente, o cinza do caminho ganha luzes vermelhas que giram freneticamente. Um guincho de freios o cerca por todos os lados. Gritos o mandam parar, deitar no chão. Obedece. O primeiro chute acerta sua cabeça, os outros distribuem-se pelo seu corpo. Em seguida é erguido pelos braços. As pernas arqueiam e são incapazes de o sustentar em pé. Um soco lhe traz o estômago à boca. Não pode se contorcer. Mãos impiedosas o mantêm suspenso no ar, tornando todo o seu corpo um alvo para os ataques.

O que restou dele é jogado contra um assoalho frio. Enquanto rodam, apanha. Quando param, é atirado como entulho naquele espaço em que agora está. Não sabe quando tiraram suas roupas. Está vulnerável, amedrontado e humilhado. Apesar de todos os ferimentos, o que mais lhe dói é que não ter como se defender das acusações. Elas não são novas, mas são indefensáveis.

Seu crime: ser negro e pobre. O agravante: estar no lugar errado, na hora errada. Sua pena: viver para sempre prisioneiro da discriminação. Sua esperança: não apanhar mais por hoje.

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Maria Avelina Fuhro Gastal

E-mail: avelinagastal@hotmail.com

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