Escolhendo minhas armas


Maria Avelina Fuhro Gastal

Tudo que conhecíamos como força de vida foi retirado de nós. Não há mais a possibilidade do encontro, do toque, do abraço, do beijo, do convívio. Fechamos as portas de nossas casas e nos afastamos de quem amamos.

Há sessenta dias ninguém passa pela porta do meu apartamento. Eu a cruzo poucas vezes para levar o lixo ou buscar alguma encomenda na portaria. Sempre sinto como se estivesse perdendo a proteção e fosse trazer para o meu bunker o inimigo que vai me matar.

Escolher termo de guerra não é por acaso. Morando sozinha, sem habilidade para conversar com plantas, sem animais de estimação para tratar como filhos, sem doces, sem carboidratos tive que buscar estratégias para sobreviver sem enlouquecer (de vez).

Estabeleci rotinas. Hora para levantar, atividade física, manutenção da ordem e limpeza da casa, preparação da refeição, grupos de estudos em literatura e escrita on line, aulas de inglês e terapia mantidas por alguma plataforma, tempo para a escrita e para a leitura.

Ler. Simplesmente impossível. Para mim que sempre li qualquer coisa que possuísse letras, até mesmo bula de remédios, é mais do que um sinal. É um sintoma.

Sintoma de que o coronavírus já me atingiu. Ele invade minha escrita, meus planos, minha visão de mundo e minha forma de perceber as pessoas. Ele já se alojou em todos.

Contaminados, escolhemos nossas armas para lutar contra ele. Elas podem ser a empatia, a solidariedade, a resiliência. Isso se ele não tiver atingido o cérebro. Nesses casos, opta-se por lançar à morte aqueles que não possuem bunkers. Há casos em que essa forma de pensar já era anterior à pandemia. Revelaram-se através de sintomas de surdez seletiva ou amnésia ocasional que ignoravam como ameaça manifestações de apoio à tortura, à discriminação de raça, etnia e gênero. Alguns venceram esses sintomas iniciais e, apesar das sequelas, estão tentando recuperar o que sempre tiveram de mais humano e foi ignorado por um momento. Contra esses, me desarmei. Declarei trégua e confio no armistício.

Para enfrentar este já tão longo e duro período, me matriculei em aulas on line de temas históricos e aulas sobre a arte brasileira. Juntando a revisão dos fatos, com a falta de não ter com quem conversar e a situação que vivemos, frases ditas pelos professores reverberam na minha cabeça. “O Nazismo não foi obra de um homem só. Hitler deu voz ao que há de mais hediondo na humanidade. Por isso, ainda é tão presente entre nós.”

Um simulacro de Hitler nos governa. Eleito. Ele e seus seguidores usam a Constituição Federal descontextualizando o direito de ir e vir para garantir a sua política de extermínio. Nunca leram a Carta Magna, nem mesmo o Título I, que trata dos Princípios Fundamentais. É acessível. Está na internet. Pode ser acessada enquanto publicam fakes ou ofensas às instituições democráticas.

Dizemos que vivemos um desgoverno. Não é verdade. Cada ação, discurso e atitude tem como fim a desestabilização da democracia. Não são ingênuos. Sabem onde querem chegar e estão dispostos a nos fazer pagar o preço daquilo que querem. Ele é um instrumento. Para dar continuidade, escolherão outro, talvez mais polido, mas igualmente mortal.

O inominável ganhou voz. Desrespeitoso, inconsequente, despreparado, desumano. Genocida. Assustador o apoio que ainda tem, apesar de nos jogar no obscurantismo, negar a ciência, pregar a desobediência civil contra os governadores do país que tentam lidar com a ausência federal na preservação da vida. Não se trata mais de uma falsa desculpa de não ter escolha na eleição. É a manifestação de uma forma de pensar. Escolhi minhas armas. Sem trégua, sem armistício. Rompimento.

Ontem tivemos 816 óbitos pela Covid-19. Quando esses números eram na Itália ou Espanha estávamos comovidos. Brasileiro pode morrer. Já nasce sabendo que nem todos terão as condições necessárias para uma vida digna. Somos muitos. Entregamos milhões para o sacrifício. Se for pobre, negro, índio ou idoso melhor ainda. Aumentamos a renda per capita sem mexer na distribuição de riquezas, diminuímos o gasto com programas sociais. Sobra mais para quem já tem muito.

Não sei o que vai restar. Não tenho ideia do tempo que levaremos para reconstruir todas as pontes, estradas e caminhos que poderiam nos levar a uma sociedade mais justa e igualitária. Não tenho mais esperança de que o sofrimento mundial provoque mudanças na nossa forma de viver e interagir. A igualdade e justiça social só virão através da luta.

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CONSTITUIÇÃO FEDERAL de 1988

TÍTULO I
DOS PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS
Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
I - a soberania;
II - a cidadania;
III - a dignidade da pessoa humana;
IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; (Vide Lei nº 13.874, de 2019)
V - o pluralismo político.
Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.
Art. 2º São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.
Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
I - construir uma sociedade livre, justa e solidária;
II - garantir o desenvolvimento nacional;
III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;
IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
Art. 4º A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios:
I - independência nacional;
II - prevalência dos direitos humanos;
III - autodeterminação dos povos;
IV - não-intervenção;
V - igualdade entre os Estados;
VI - defesa da paz;
VII - solução pacífica dos conflitos;
VIII - repúdio ao terrorismo e ao racismo;
IX - cooperação entre os povos para o progresso da humanidade;
X - concessão de asilo político.
Parágrafo único. A República Federativa do Brasil buscará a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações.

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Maria Avelina Fuhro Gastal

E-mail: avelinagastal@hotmail.com

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