Maria Avelina Fuhro Gastal
Descendo a rua Miguel Tostes, entre a Castro Alves e a Casemiro de Abreu, à direita, há uma grande placa indicando que aquele estabelecimento vende bebidas e sapatos.
Bebidas e sapatos? Qual o interesse comum entre os dois produtos?
Mirabolei hipóteses.
1. Entro na loja para comprar bebidas para levar a um encontro com amigas, percebo que estou com um sapato de salto, procuro uma sapatilha ou tênis para evitar um entorse por associação de substância psicoativa que altera as funções psicomotoras com elemento de risco permanente.
2. Entro na loja para comprar um vinho para um encontro romântico e me dou conta que estou de sapatilhas enquanto o mais indicado para sedução é um sapato bico fino e salto agulha.
Por não beber, minhas hipóteses femininas logo se esgotaram.
Como os homens reagiriam à placa?
1. Não enxergariam a palavra sapatos e entrariam para comprar bebidas. Nem lá dentro veriam os sapatos à venda.
2. Não enxergariam a placa. Estariam de olho na sinaleira, com a palma da mão posicionada para acionar a buzina tão logo o sinal verde acendesse, enquanto com os dedos da outra mão cavocariam o nariz.
Por algumas quadras tentei imaginar outras situações, sem sucesso. Percebi que algo fora do padrão tinha desacomodado meu modo de pensar as opções de comércio. E daí? Cada um que venda o que quiser, da forma que bem entender. Se não me atrai, eu que não entre, não compre, não abra um negócio desse tipo. Somente isso posso escolher, a escolha dos outros não me diz respeito. Vale para bebidas, sapatos, relacionamentos.
Fugir da expectativa não é o problema. O problema está na própria expectativa que limita, julga e condena aquilo que não se adapta a ela. A expectativa é burra e preconceituosa, prefere a mentira e a farsa, aposta na frustração. Pessoas infelizes são mais manipuláveis, seja pelos costumes, pela ideologia ou pela fé.
Chamem de loucura ou epifania um texto que nasce de uma placa banal. Eu chamo de salvação.
Há dias procurava um tema para escrever que não desse voz à tentativa de instalar o terror entre nós pelo massacre e ameaça as nossas crianças e adolescentes.
Estamos amedrontados, horrorizados. Em 2018, muitos apertaram a tecla que abriu a porta para a violência e liberou um mundo obscuro que manipula e mata para atingir seus objetivos. Não se deixe levar pelo canto da serpente, de novo.
Hoje, bebida e sapatos, amanhã e depois, manter meus olhos abertos para, além do medo e tristeza, e buscar tudo o mais que ainda está por aí.
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