Maria Avelina Fuhro Gastal
“...nada se começa. É isso: só quando o homem toma conhecimento através do seu rude olhar é que lhe parece um começo.”
Clarice Lispector
Nossos olhos nada veem. Apenas enxergam. Ver depende de quem escolhemos ser. Se optarmos pela órbita do nosso umbigo, não enxergaremos o cordão que nos une aos outros. Eles jamais existirão a não ser para o nosso prazer ou para a nossa ira. Enxergamos, mas estamos cegos. Não vemos a criança que vende balas na sinaleira, mora nas ruas, calça chinelos no inverno, não frequenta a escola, não tem o que comer, usa crack nas esquinas, sofre abusos, traz marcas de espancamento pelo corpo. Os jovens sem perspectivas, vendendo seus corpos, rompendo suas veias, desistindo da vida, não tendo saída além de matar ou morrer, não vemos. Nem as mulheres espancadas, abandonadas, sozinhas com filhos para criar, com jornadas infindáveis de trabalho, desrespeitadas, assassinadas. Ou os homens tratados como bichos, humilhados, transportados como gado. As pessoas que varrem as ruas, cortam a grama, regam o jardim, recolhem o lixo, limpam nossas casas, alimentam nossos filhos. Não vemos. Enquanto aliviam nossas vidas, vivem sem condições para aliviar a deles. As favelas, as ruelas, os esgotos a céu aberto, as frestas das paredes, a falta de paredes, a inexistência de uma casa. Os índios, os negros, os pobres, os feios, os desvalidos, os deficientes. Não vemos o que não é espelho. Olhamos somente para o mundo que queremos ver. Nossas casas, carros, roupas, viagens, amigos, conta bancária. Do que pode sujar nossa visão, desviamos o olhar. Melhor não ver. Não vendo, não preciso me importar. Se víssemos, não poderíamos calar. Se víssemos, não poderíamos aceitar. Mas se você não desistiu de ser gente, mesmo cego, poderá ver. Não são os olhos que veem a dor, o sofrimento, a lágrima, o desamparo. Eles são vistos com aquilo que só quem escolhe ser humano possui. Não sei se é alma, alteridade, empatia, compaixão. Só tenho certeza de que não é aceitação, muito menos indiferença.
Publicado na coletânea Marias e Clarice - 2020 - Editorial Santa Sede
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