Maria Avelina Fuhro Gastal
Gosto de ler biografias. A primeira que lembro de ter lido foi Malcon X, depois vieram Freud, Chatô, Getúlio, Olga, Che Guevara, Lennon, Keith Richards, Marcel Proust, Mick Jagger, Kafka. Não necessariamente nessa ordem nem só essas. Gosto de pensar que leio por interesse histórico, para entender a sociedade e as pessoas, para suprir minha vontade de sempre saber mais. O lado sombrio me faz questionar se não sou uma fofoqueira enrustida.
Nos últimos dois anos, li as biografias de Michelle Obama e de Lula. Figuras do nosso tempo que atravessam nossa própria trajetória, mas ainda com um distanciamento que não me faz íntima deles.
Acabei, semana passada, Caetano – uma biografia, de Carlos Eduardo Drummond e Marcio Nolasco. Não posso dizer que li, apenas que revivi.
Percebi que minhas primeiras lembranças com Caetano vêm dos meus quatro, cinco anos. Família reunida, televisão em preto e branco, silêncio para ouvir as músicas dos festivais. Depois, a torcida pelas escolhidas até o anúncio da canção vencedora.
Desde lá, minha vida tem trilha sonora de Caetano. Aos dezessete anos, matei aula no cursinho para ir a um show dele no Araújo Vianna (o antigo, sem teto, sem glamour, com uma acústica terrível). Uma colega da minha mãe me viu, e me dedurou. Bronca interminável seguida de castigo e eu nem aí, afinal, eles não entendiam nada e eu só queria dar o fora dali, sem levar eles comigo.
Para cada lembrança da minha vida há uma música de Caetano para fundo musical, há seis décadas. Meu relacionamento mais longo e com poucos conflitos. Algumas vezes não entendi nada do que ele falava, mas o som e o ritmo da voz me hipnotizavam. Ainda hoje.
Lendo a biografia descobri as histórias atrás das letras. Caetano transborda para as canções vivências, lembranças, tristeza, alegria, amor, abandono, dor de cotovelo. Não só quando compõe, interpretando músicas de outros ele está lá inteiro. Canta de dentro, não só da boca para fora.
Não sei se há outra maneira de fazer arte, de compor, de cantar, de esculpir, de pintar, de escrever. Trago à tona o que se debate em mim. Não conto minha história ao escrever, mas não tem como não me desnudar e encontrar histórias e vozes que deem conta daquilo que vivo ou deixei de viver.
Somos solares e somos sombrios. Amamos e, também, odiamos. Acolhemos e rechaçamos. Não somos constantes. Acertamos, erramos. Pedimos perdão, ignoramos. Rimos, choramos. Há em nós, muito de todos e de cada um que está ou esteve nas nossas vidas. Nem sempre conseguimos acomodar tantas vivências e suas contradições. Nem sempre devemos acomodar. O conforto estagna sem garantir prazer ou alegria. No movimento, nas dúvidas, nos recomeços somos obrigados a buscar outro de nós, aquele adormecido nas entranhas.
Caetano, na minha adolescência, representava o transgredir que eu não me permitia, a irreverência e a liberdade que eu sufocava. Amadurecemos, sem perder a alegria. Ele canta amores, rompimentos, desconfortos, denúncias, encanto e desencanto com a vida. Eu escuto repassando minha trajetória, hoje mais transgressora do que antes.
Não fosse um tabu para mim, eu deveria montar uma play list com as músicas dele para tocar no meu funeral. Encarar a morte é se fazer livre para viver, “sem lenço e sem documento, nada nos bolsos ou nas mãos”, apenas seguir vivendo. E caetaneando. Por que não?
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