Maria Avelina Fuhro Gastal
Pode ser o céu em azul claro, sem nuvens, com o brilho do sol rompendo sereno, enquanto sentimos no rosto uma brisa suave. Aos poucos, nuvens brancas, parecendo algodão desfiado, vão ocupando a imensidão daquele azul. Vemos querubins, bruxas, besouros, beija-flores. Vemos aquilo que nossos olhos encontram na nossa memória. Não são mais nuvens. Viram brincadeiras a nos tirar da seriedade da vida.
Talvez por ciúme pela atenção perdida, o céu se veste de cinza. As nuvens revidam. Tornam-se espessas, mudam de forma com mais velocidade, escondem o sol, liberam faíscas, rugem furiosas. A tensão aumenta. Nossos olhos já não se importam com as formas, buscam um lugar para nos abrigar dos pingos que começam a cair.
Apesar da ameaça, a chuva não passa de gotas batendo nos vidros. Pingos equilibram-se nas folhas das árvores, balançam em um jogo de cai-não-cai. O sol rompe a barreira e projeta seus raios nas gotas que se mantêm sobre folhas, flores, encostadas aos vidros. No encontro, brilho de cores que festejam o arco-íris que se forma.
Pode ser o som das brincadeiras infantis, do riso sem censura das crianças, o silêncio do sono de um bebê, que sorri mesmo dormindo. Ou o volume de uma barriga que promete uma nova vida.
Pode ser um abraço, um carinho, uma mensagem, um reencontro, um elogio, uma saudades, uma lembrança, um afago, um acalanto, uma cena de ternura, uma surpresa.
Não importa o que seja, são as belezas do dia a dia que nos mantêm vivos. São elas que nos fazem reencontrar a esperança e reacendem o brilho do nosso olhar, tantas vezes opaco pela barbárie que nos cerca.
Duzentos reais por trabalho realizado e não pago são quitados por espancamento e morte. Colocar a mão na bolsa perto de casa na pressa de não sofrer violência e, em vez da chave, encontrar três tiros que matam, desferidos por um vizinho que, por suspeitar e temer, se vê no direito de eliminar, não o sentimento, mas o infeliz que ousou fazê-lo sentir-se ameaçado.
Os alvos, pretos. Como há muito acontece e fingimos ser apenas fatalidade. Tanto acreditamos nas nossas mentiras que Moise fugiu da violência do Congo, acreditando na boa convivência racial no Brasil. Encontrou-a nos pontapés e golpes que lhe tiraram a vida. Como pretos encontram desde que aqui chegaram trazidos como mercadoria. No Brasil, pobre é preto e todo preto é perigoso. Assim, vida preta vale menos do que a vida branca.
Sermos brancos não nos faz assassinos. Sermos silentes, nos faz cúmplices da bestialidade e estamos atrás de todo o tiro disparado, de todo golpe desferido, de toda morte que encontra na cor da pele o motivo para se fazer banal. Aí somos todos brancos assassinos.
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