Além do esfregão, dos peitos e da bunda


Maria Avelina Fuhro Gastal

─ Tu só faz ginástica pra ter força pra esfregar o chão e tirar o lixo.

Foi dessa forma que, por desavença em um jogo de bola, um menino, de sete anos, agrediu uma menina, também de sete anos. Foram colegas toda a pré-escola e frequentam o mesmo clube.

Não sei se ele tem irmã, mas sei que tem mãe, e pai. Provavelmente tem também tem diarista que presta serviços para a família. Em uma só fala, aos sete anos, mostrou o que vem construindo como imagem da mulher e como desqualificação do trabalho doméstico.

Limpar o chão, lavar e passar roupa, tirar o lixo, cozinhar, esfregar a sujeira dos outros, escovar banheiros, aspirar o pó, limpar vidros, polir panelas e pratarias, embalar crianças que não são suas é a forma de trabalho de um número inimaginável de mulheres para alimentar os filhos, mesmo que o salário não garanta nem o guisado de segunda.

Enquanto eu remoía e vociferava pelo machista abjeto em construção, reconheci em mim preconceitos que têm a mesma base.

Nas redes sociais, comoção e tristeza pela morte de Marília Mendonça. Sabia dela tanto quanto de Maiara e Maraísa, cantoras de sofrência.

A morte sempre nos choca, aos 26 anos é inadmissível. Deixar um filho pequeno é avassalador. Em um primeiro momento, senti como mãe e avó. Os depoimentos de artistas e fãs nos jornais me fizeram querer saber mais sobre ela.

Feminejo me era totalmente desconhecido. Aguçada minha curiosidade, percebi que ocupar um espaço musical e artístico dominado por homens e temáticas masculinas é mais um dos tantos desafios que as mulheres enfrentam a cada dia. O mundo é tão masculino que aceitamos, como normal, o absurdo.

Ontem, fiz uma playlist com músicas da Marília Mendonça e saí para a minha caminhada. Mais que sofrência, ouvi crônicas de relacionamentos em forma de música. Nelas, a mulher tanto trai quanto é traída, tanto abandona quanto é abandonada, deseja, ignora, vive relacionamentos vazios por conveniência de ambos, não é vitimizada nem idolatrada, mas apresentada em todas as inconsistências e incoerências que trazemos como pessoas. Algumas frases reverberaram em mim: me apaixonei por aquilo que inventei de ti, só te relacionas por gritos e ordens, onde te desconheci? Pensei na força desses versos cantados por milhões de mulheres e meninas que testemunham ou vivem relacionamentos abusivos. Empoderamento feminino não se dá só por discurso acadêmico ou filosófico, é preciso que ele faça sentido para a vivência e que possa ser gritado e repetido quantas vezes forem necessárias para cobrir as vozes de séculos de opressão à mulher. Canções, contos, crônicas, novelas, romances, manifestações artísticas, tudo deve desmascarar a violência da norma masculina e heteronormativa.

Os comentários feitos a respeito do processo de emagrecimento dela, tiram da frase do menino de sete anos a força que devemos ter para usar o esfregão e substitui por peitos e bundas padronizados por uma estética que aniquila a autoestima. A mulher é construída só como objeto de uso, desejo e deleite, negada a sua essência.

Se não bastasse toda a construção masculina de mundo, me percebi tão preconceituosa quanto aqueles que nos medem e julgam. Lamento ter sido só pela morte que eu tenha descoberta o quanto de vida e de revolucionário existe naquilo que desdenhei como sofrência.

O caminho ainda é longo, haja vista a formação competente de futuros machistas abusadores e desrespeitosos, portanto, precisamos nos despir de ideias preconcebidas e aplaudir todo e qualquer movimento que avance para a valorização da mulher. Não importa se é do meu gosto musical, literário ou artístico, mas, sim, que represente a possibilidade de atingir cada vez mais mulheres, e homens que se propõem a evoluir junto.


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Maria Avelina Fuhro Gastal

E-mail: avelinagastal@hotmail.com

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