Além da lembrança


Maria Avelina Fuhro Gastal

Eu, entre os dois, contando uma história. Eles atentos, encostados em mim. Acordei, não estavam ali. Por segundos fiquei tentando lembrar se tinham ido dormir na casa dos avós ou em algum amigo. Não conseguia lembrar. Quase em pânico, me dei conta que há décadas não tenho eles na minha cama e há anos nem mais na minha casa. Mas, nessa madrugada, eles estavam comigo, crianças.

Em um breve momento em que a consciência relaxou, vivi com intensidade um momento do passado. Não foi memória ou lembrança. Eu estava entre eles, percebi o calor dos corpos, senti a delícia de tê-los comigo antes de adormecer.

Memória ou lembranças trazem os fatos, adéquam sensações e controlam emoções. Vivência nos invade em um descuido de nossas defesas. Um sabor nos leva à infância, um som a um momento intenso, uma frase ou palavra destravam o sótão de nossos lixos e tesouros.

No caminho para o hospital quando a minha neta nasceu, meu corpo tremia. Era eu atravessando a cidade para ter meu primeiro filho. Vivi dois tempos no mesmo momento, me vi quase menina sendo mãe, e vi meu menino se tornando pai. No caminho, a percepção da intensidade anestesiada da minha vivência ao saber que naquela noite meu filho nasceria.

Ouvir o badalar do sino da Catedral foi uma constante na minha vida, morei, estudei e trabalhei bem próximo a ela. Quando toca, a memória me leva à proximidade do fim da aula ou à de buscar meus filhos no colégio. Apesar de minha total falta de fé, várias vezes entrei na igreja e ali fiquei tentando organizar e pacificar meus sentimentos. Até aqui, memória ou lembranças. Há alguns meses, em aula on line, uma das alunas, que mora na Rua Duque de Caxias, estava com o microfone aberto quando os sinos badalaram. Fui sugada pela vivência de desamparo e de conforto tantas vezes experimentadas dentro da Catedral.

Todos os tempos moram em nós. Cobrimos sensações e vivências com camadas de controle e proteção. Trazemos à memória aquilo que construímos a partir dos fatos. Quando desavisados, abre-se um portal para o verdadeiro sentido de nossas lembranças. Só então nos entregamos e sentimos o que trazemos impregnado em nós, sem armadura.

Não temos como forçar a experiência. Ela nos arrebata no descuido, na imprevisibilidade, na total incoerência do momento. Só temos que nos entregar a ela.

Essa noite, revivi meus filhos, crianças, comigo. Não importa quão distante no tempo esse momento esteja, em mim esteve no passado, está no presente e estará no futuro. Não é da ordem do tempo, mas da ordem do vivido e isso permanece. Quando acessado, entregue-se.

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Maria Avelina Fuhro Gastal

E-mail: avelinagastal@hotmail.com

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