Maria Avelina Fuhro Gastal
Ano: 1984
Situação: formada há pouco mais de dois anos, trabalhando em uma instituição vinculada à Legião Brasileira de Assistência (LBA), ganhando um salário-mínimo e meio, apesar do curso superior, um filho pequeno, e o marido ganhando um pouco mais do que eu.
Oportunidade: concurso público para o cargo de Assistente Social, sem prova de títulos.
Desafio: concorrer a uma das duas vagas previstas no edital com todos os meus professores e supervisores da faculdade.
Foi assim que passei a estudar feito louca nos períodos em que não estava trabalhando, cuidando do filho, limpando a casa, cozinhando, lavando roupa. Nevou em Porto Alegre. Não vi. Meu filho, à época com cinco anos, ainda tentou me avisar:
─ Mãe, tá nevando.
─ Que legal. Fica olhando na janela que eu tenho que continuar estudando.
Pensei que era coisa de criança, viu na chuva, neve. Nem levantei os olhos. No Jornal Nacional me surpreendi com a notícia da neve.
─ Mas eu te disse, mãe.
Não sei quantas coisas mais ele me disse e não ouvi ou não levei a sério, naquele período. Havia uma vasta bibliografia a vencer e uma oportunidade a perseguir.
No domingo da prova, nem almocei. Não dava. Saí mais cedo de casa com medo de me atrasar. Foi a sorte. Quando vi que não aumentava o movimento em frente ao colégio, me dei conta que estava no lugar errado. Estava no Pio XII, a prova era no Ernesto Dorneles. Voei pela Duque de Caxias. Suada, sem fôlego, desmazelada e, ainda com tempo de fazer o percurso mais umas três vezes, no mínimo.
Cheguei na casa dos meus pais para buscar meu filho derrotada. Sabia que não tinha conseguido, não esperava mais do que 7,5 de nota. Tinha consciência das minhas dúvidas ao responder e a certeza de que os professores e supervisores sabiam as respostas. Não perderia a vaga por causa da falta de títulos, mas por despreparo.
Minha nota foi 7,75. Minha colocação, primeiro lugar, seguida de outra recém-formada. No terceiro lugar, uma das mais renomadas professoras da faculdade. Só as duas primeiras estavam classificadas.
Em outubro de 1984, tomei posse como Assistente Social da Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul.
De início, fui confrontada por uma servidora que estava no último ano da Faculdade de Serviço Social e lutava para impugnar o concurso público sob a alegação de perseguição política. A lisura do concurso e o resultado eram questionados. Um dos meus tios paterno havia sido deputado estadual e presidente da Assembleia (biênio 1975-76) e minha mãe era servidora celetista do Poder Legislativo. Eu passara ser a sobrinha do João Carlos Gastal e a filha da Dulcema.
Por anos fui tentando entender o funcionamento da Assembleia, os jogos políticos, a correlação de forças. Aliado a essa tarefa nunca fácil, tinha que me construir como profissional merecedora do cargo, talvez muito mais por insegurança minha, por honra ao histórico do sobrenome, do que por exigência da instituição.
Tanto meu tio quanto minha mãe eram reconhecidos como éticos, responsáveis, sérios e confiáveis. Eu precisava ser mais do que sobrinha ou filha, sem negar ou desmerecer o legado deles.
Não sei quando me tornei servidora pública ao longo desse processo, mas sei o que ser servidor público representa. Requer amplo conhecimento da Constituição e das leis dela derivadas, entendimento da legitimidade das agendas dos movimentos sociais e o reconhecimento da importância das esferas de debate.
Somos sempre atacados, criticados, atribuídas a nós todas as dificuldades do Estado em qualquer nível. Já fomos comparados ao câncer da sociedade. Câncer se extirpa, combate, elimina. No entanto, o tratamento também pode matar o paciente. Toda vez que a sociedade se levanta contra nós, está também condenando à morte as estruturas de controle público e o próprio Estado Democrático de Direito ao fragilizar suas estruturas. Sem vigas fortes, ele não existe.
Reforma administrativa deve ser feita, mas não a que é proposta. A reforma deve visar ao fortalecimento dos quadros permanentes das estruturas do Estado, blindá-los contra a má política e ao mau uso do dinheiro público, impedir seu aparelhamento ideológico que beneficia aos detentores de cargos eletivos, portanto transitórios e comprometidos com acertos eleitorais. Mecanismos de promoção e ascensão a cargos de chefia devem conter regras claras de qualificação profissional e conduta ilibada no trato da coisa pública.
Nossa Democracia está em risco. Não precisamos de um golpe para destruí-la. Há anos o trabalho vem sendo feito, desmantelando estruturas, minando o sistema dentro dele mesmo. Enfraquecer o serviço público é mais um passo nessa direção. Precisamos parar de acreditar em discursos que servem a interesses de grupos políticos ou econômicos. Repetir sem pensar tudo que é veiculado em horário nobre na televisão tem nos conduzido ao caos que hoje nos leva a milhares de mortos, desemprego em massa, aumento da pobreza, enxergar comunista em qualquer pessoa que defenda justiça social.
Não nego que há mudanças necessárias no serviço público. Mudanças que tenham como meta o aperfeiçoamento, não a destruição.
Em dezembro de 2012 me aposentei. Foram 28 anos de construção da minha identidade como servidora pública. Por diversas vezes, me senti envergonhada por tudo que era atribuído a nós. Hoje, tenho orgulho do trabalho que eu e tantos outros fizeram e fazem na esfera pública. Saí de lá como a Avelina, merecedora da classificação obtida no concurso público, sem irregularidades, não mais a sobrinha do João Carlos ou a filha da Dulcema. Honrei a memória deles.
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