Maria Avelina Fuhro Gastal
Prometi a um amigo que meu próximo texto seria leve. Pedi a ele que torcesse para que nada acontecesse para quebrar minha promessa. Isso há menos de quarenta e oito horas. Neguei onde vivo, ignorei a realidade do país em que moro.
Venho amortecendo fatos e não os transformo em textos. Nada escrevi sobre a truculência da polícia em Pernambuco que cegou dois cidadãos, calei sobre a perversidade da mãe, esposa do vice-prefeito de Porto Alegre, que usou o próprio filho como ponte para fotografar, no ambiente escolar, a filha de uma adversária política do seu marido, apenas li manifestações sobre a violência contra uma criança de cinco anos ao ter a foto divulgada nas redes sociais, ameaçada de estupro, tudo por ser filha de uma mulher que defende seus ideais.
Como um último pingo que faltava para transbordar tudo que vinha me inundando, uma jovem grávida, caminhando ao lado de sua avó, foi atingida por uma bala no Rio de Janeiro e morreu. Nenhuma bala é perdida. Acionar o gatilho é opção, atingir qualquer um passa a ser detalhe. Perdida é a nossa dignidade ao ver situações se repetindo, perdida é a função do Estado que deve preservar vidas em vez de acabar com elas.
Existem em mim crônicas leves, divertidas, construídas em pensamento durante o cotidiano. Algumas estão prontas, na minha cabeça, há muito tempo, até títulos têm. Não chegam ao papel pois a tragédia atravessa o dia a dia. Pareceria desrespeito à dor, ao sofrimento, às quase meio milhão de mortes por Covid, a tantas vidas, na sua imensa maioria, pretas que foram interrompidas por balas irresponsáveis, à fome que volta e se alastra na sociedade, a tantos que se abrigam em containers de lixo como se fossem restos quaisquer de carne.
Desculpa, José, ainda não foi desta vez. Cobra, reclama, não me deixa esquecer da promessa. Preciso disso para não desistir de reconhecer o que há de belo em viver.
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