Maria Avelina Fuhro Gastal
Martin Luther King tinha um sonho, e morreu por ele. Sonhar pode custar a vida ou, no mínimo, vários reais para se ter o que deveria ser básico.
De sexta-feira a domingo acordei em um quarto com janelas sem grades nem persianas, bastava abrir o black out para ter um jardim como visão. A profusão de verdes e flores invadia também as portas de vidro que separavam o ambiente interno do externo. A rua não era ameaça.
Pude caminhar em calçadas limpas, sem nenhum papelzinho ou bituca de cigarro jogadas no chão, nem fezes de pets ou de pessoas. Pisei em folhas de plátanos em várias cores e matizes. Essas folhas me fazem incorporar o outono, nunca melancólico, mas um recolhimento para o reflorescer depois de curadas as feridas.
Esse mundo tranquilo frente à realidade é cercado, com acesso restrito e controlado, coloca preço naquilo que não deveria ser raro, muito menos caro.
Eu tenho um sonho. Não serei morta por causa dele, mas morrerei sem vê-lo realizado. Isso acaba matando em mim um pouco da alegria de viver. Quero muito uma sociedade sem grades nem muros, quero calçadas limpas, ruas floridas, tempo para apreciar a natureza, sossego para estar com os afetos. Mas não quero só para mim. Não me basta poder pagar por alguns dias de paz e serenidade, eles são esvaziados no retorno à realidade.
Volto para um bairro urbanizado, encontro uma casa confortável, e bonita, em um prédio cercado por grades. Tenho comida na mesa, plano de saúde, renda mais do que suficiente para não pensar no dia seguinte. Mas vivo em um país que faz da desigualdade social banalidade e, com isso, não sei mais lidar.
O mundo paralelo em que vivemos alimenta-se da fome dos outros. Os bens que acumulamos espoliam quem trabalha por salário irrisório. Ainda viveríamos muito bem mesmo que tivéssemos que abrir mão de alguma coisa para que o outro tivesse a chance, não de viver melhor, mas, de viver com dignidade. Nossos sonhos ignoram o outro. Acumulamos, consumimos, desprezamos o que temos querendo o que ainda não possuímos, sem sentir qualquer vergonha pela nossa ambição a custa da miséria de tantos.
Imagino a dor de quem tem como sonho poder alimentar os filhos, tapar as frestas da casa por onde o inverno entra. Nada disso deveria ser sonho. Sonho é o que vai além do essencial. O que garante a vida deveria ser direito e nós não deveríamos conviver tão bem com tamanha insensatez.
Alimentamos nossos sonhos, ignoramos o pesadelo de muitos.
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