Maria Avelina Fuhro Gastal
Eu ainda não era alfabetizada quando ganhei o primeiro livro. Era a história da Cinderela, mas o livro tinha que ser montado. Nas páginas, quadradinhos em branco acima do texto, nas últimas folhas, várias figurinhas coloridas, algumas brilhosas, que deveriam ser coladas no quadradinho com o número correspondente ao do verso da figura. Devo ter recebido muita ajuda, pois tinha em torno de quatro anos. Virou obra de arte. Andava com o livro para todos os lugares, folheava sem parar, “lia” as figurinhas e recontava a história. Acho que foi aí que me apaixonei por livros.
Troquei a Cinderela pelas Fábulas de Esopo. Até hoje tenho o livro entre outros tantos na prateleira. Meu pé de laranja lima veio a seguir entre muitas lágrimas. Apesar de tanto sofrimento, preferia chorar a aguentar a chata da Pollyanna que minha mãe considerava indispensável para a minha formação. Negacionismo nunca teve eco em mim.
Literatura era minha disciplina favorita. Lia tudo com prazer, fazia ficha de leitura e adorava debater em aula. Cheguei a pensar em cursar Letras, mas isso dá outra crônica.
Ler sempre esteve entre minhas atividades de escolha. Na falta de livros, lia bula de remédios, as crônicas das revistas Manchete e Cruzeiro, muitas vezes escondida dos meus pais.
Com o nascimento dos meus filhos revisitei os livros da minha infância. Reli toda a coleção do Monteiro Lobato no puerpério da minha filha mais nova. Alguns trechos lia em voz alta para o mais velho na hora de dormir. Ele preferia livros sobre tigres, leões, cachorros. Atendia ao desejo dele e voltava à coleção depois que ele adormecia e antes que ela acordasse para mamar.
Ao saber que seria avó, decidi escrever um livro para a Alice. Escrevi, também, para o Miguel seis anos depois.
Para Alice sou a avó dos livros e das histórias. Muito pequena perguntaram a ela o que queria me dar de aniversário. A resposta foi um livro e uma touca de lã rosa. Não me perguntem da touca. Ainda não achei oportunidade para usar.
No meio da minha trajetória percebi que, além dos livros, me encantava a aquisição da leitura, o processo de alfabetização. Fiz minha primeira especialização em Educação, optando pelo curso Piaget: a gênese do conhecimento e da linguagem. Difícil. Desafiador. À época, o mais velho estava sendo alfabetizado. Usei todas as testagens para acompanhar o seu desenvolvimento cognitivo. Mais do que meu filho descobrindo as letras, foi meu estudo de caso para entender a teoria. A minha filha mais moça simplesmente leu para mim, antes de estar na primeira série. Não sei como aconteceu. Faltava tempo, disponibilidade para dar conta da vida e do processo de alfabetização deles.
Agora fui premiada. Em tempo de aulas on line, tenho acompanhado a Alice no primeiro ano. Foi-se a especialista, a mãe ocupada, a profissional estressada, ficou a avó embevecida com as descobertas.
“Asai, beteraba e bifi” são as comidas preferidas dela, ou pelo menos as que ela teve coragem de arriscar na escrita. Quase dá para ver a cabecinha funcionando, as hipóteses sendo construídas, os sons sendo repetidos em voz alta até descobrir como reproduzi-los em letras e palavras. Um sonho. O brilho do olhar e o sorriso de satisfação ao vencer a barreira de um som são emocionantes.
Sei que não é justo com ela não ter a oportunidade de estar na escola. Mas sei também que estamos construindo uma nova parceria na convivência. Vibramos juntas. Virei vó-colega, ai de mim que não faça, longe da câmera, as atividades da aula de Educação física. O resto é com ela. Sou apoio, a tarefa é dela e me esforço para respeitar o tempo dela e não tentar aliviar o sofrimento da descoberta, privando-a do prazer pela conquista e superação.
Ela já domina o ambiente virtual das aulas, até mesmo quando a Internet cai. Logo que a professora ingressa na sala, Alice diz: — Vó (ou Ave- desaforo), pode pegar seu livro para ler. É a autonomia falando e eu tenho vontade de amassar.
A cidadã que coabita na avó se entristece por viver em um país em que a taxação de livros é opção, onde muitas crianças não têm acesso à Internet para acompanhar as aulas, e onde muitos pais e avós não têm como viver esse momento de descoberta com as crianças pois não viveram suas próprias descobertas, apenas lutaram para sobreviver.
Ler é ato político. Ler é afeto e pertencimento. Ler é dignidade. Ler tem que ser um direito, cláusula pétrea de qualquer país que se queira grande.
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