Maria Avelina Fuhro Gastal
Zé já foi chamado de pivete, trombadinha, neguinho, favelado, vileiro, negrão, meliante, vagabundo, parasita. De verdade, apenas o fato de morar na periferia, o que não faz dele favelado ou vileiro, mas excluído.
Agora é chamado de rico. Um novo rico que ganha um pouco mais de dois salários mínimos e tem alguns livros em casa. Nasceu com o defeito de querer ser o que não lhe é permitido, cidadão.
Dois caixotes de madeira empilhados guardam toda a sua biblioteca. Comprados, três ou quatro, todos nos balaios da Feira do Livro, preço dito acessível, mas que custou para ele o pão daquela noite. Todos os outros, doados, achados.
Na falta de novos livros, relê os que tem. Não sobra tempo para ir a uma biblioteca. Em horário comercial, trabalha, antes e depois, se locomove em ônibus sujos e lotados. Entre o ir e o voltar para o trabalho perde cerca de duas horas diárias, quase sempre em pé.
Das cento e sessenta e oito horas existentes em uma semana, tirando o trabalhar, dormir, se locomover, restam livres para Zé sessenta e duas, divididas com Maria na limpeza da casa, nos cuidados com os filhos, nas roupas para lavar, na preparação das refeições, na visita às mães de ambos, nas reuniões da comunidade, no auxílio aos vizinhos com reparos nas casas que sobrevivem ao tempo por teimosia e necessidade.
Zé e Maria estão no limite. Dois salários mínimos e um par de livros fizeram deles ricos. Olham para a casa maltratada, para os filhos amontoados na mesma cama, para as contas a pagar, para o esgoto a céu aberto que corre atrás da casa, para a rua de areião que vira barro na chuva e poeira no calor e se vêm pobres, explorados, ignorados, excluídos, apagados, exterminados.
Mais uma mentira para mascarar a realidade. Ninguém é rico com dois salários mínimos. Com menos do que isso, nem livro didático dá para comprar. Falta comida, falta teto, falta dignidade. Dois mil de duzentos reais mensais não compram apartamentos ou casas em condomínios fechados com espaço gourmet, área de lazer, brinquedoteca, mata nativa, aquecimento de água a gás, quartos com banheiros, lavabo para visitas, planta em conceito aberto. Não paga viagens a Europa, Nova York, Porto de Galinhas ou, até mesmo, as passagens de ônibus intermunicipais para toda a família poder conhecer o mar, a Serra, o Pampa e nem mesmo o Zoológico.
Zés ninguém e Marias quaisquer são desrespeitados a todo momento. Chamá-los de ricos é perversidade. Taxar livros é fomentar a desigualdade, calar vozes, apagar histórias.
Matar pobres, cercar a periferia, queimar livros seria demasiado escancarado, então, estimula-se a circulação do coronavírus, empurra-se a pobreza para guetos longe de nossas vistas, aumenta-se o imposto sobre o livro. Mascarado o nazismo, ele persiste em verde e amarelo.
Clique aqui para seguir esta escritora
Pageviews desde agosto de 2020: 280123
Site desenvolvido pela Editora Metamorfose