Maria Avelina Fuhro Gastal
Texto produzido para a oficina com Guto Leite – 2º semestre 2016
Sou porta, como tantas outras, mas não como todas as outras. Não falo de portas menores, que se apropriaram do nome, mas não da função que nos dignifica. Elas abrem armários, carros, aeronaves, mas falta-lhes o principal: permitir o trânsito de lá para cá ou daqui para lá de pessoas e animais através de uma parede. Sou esta porta. A que abre espaço na parede compacta e intransponível. Somos muitas, mas diferentes entre nós. Mudamos em tamanho, posição, material, direção do movimento. Algumas de nós estão repletas de adornos, uns luxuosos, outros panfletários. Outras, cobertas de adesivos ou de placas indicativas. Há as que trazem a identificação de quem ocupa o espaço além de nós, ou o quê se guarda depois de nós, e, ainda, daquilo que fazem atrás de nós.
Meu trinco abre espaços e libera para experiências diversas. Muitos me transpõem. Alguns se preocupam em fechar-me. Outros, após passarem por mim, me ignoram, deixando-me escancarada até que um vento ou alguém meticuloso e ordeiro me reponha à posição inicial. Ser porta me orgulha.
Então me digam, é justo eu perder o orgulho pela minha existência e função pela transgressão de uma parede? Elas sim são imóveis, frias e separatistas. Elas precisam de nós para não serem um mero transtorno nas vidas alheias, tornando todos prisioneiros. Não me venham com as janelas. Elas só permitem vislumbrar através das paredes, oferecendo uma promessa de liberdade que não podem cumprir. Aqueles que as utilizam estão motivados pela aventura ou pelo desespero. Pensam que transgridem, quando apenas obedecem aos seus devaneios. Superadas as janelas, voltemos às paredes. Imóveis. Até ontem. Uma delas aproximou-se tanto de mim, que não sou mais capaz de me movimentar. Encostou-se no vão que era por mim usado para liberar o espaço entre dois mundos, o daqui e o de lá. Não perdi a forma, não perdi o trinco, nem a posição. Mas perdi o movimento. Eu abria para lá. E no lá, agora, tem uma parede, que desobedeceu a sua função e impede a minha. Serei eu ou ela a responsável pela minha ineficiência? Por que fui mantida se não me deixaram espaço? O que a parede precisa tanto esconder?
Talvez eu seja esquecida, quem sabe ironizada, sem que em nenhum momento tenha deixado de ser porta. Aos olhos das outras, passarei a ser menos do que as menores, sem importância alguma. Elas não percebem que se uma parede se moveu, todas as outras serão capazes. E elas continuarão paredes, enquanto nós não saberemos o que somos.
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