Maria Avelina Fuhro Gastal
Escrever as crônicas de domingo tem sido um desafio. Não posso contar com a realidade para torná-las leves. Atravesso a semana buscando fragmentos no cotidiano ou nas lembranças que sirvam de argumento para um texto menos sombrio.
Nos últimos sete dias, ideias pipocaram, foram sendo anotadas, ganharam esqueletos na minha cabeça. Estão sendo gestadas, mas o ambiente externo não é amigável e acaba interferindo no resultado. Com a divulgação de uma grande parte do Estado em bandeira preta por alto risco de contaminação pelo Coronavírus e o iminente esgotamento da capacidade de atendimento pelos hospitais, todas as ideias pareceram deslocadas, fora do seu tempo.
Hoje, me atrasei para a caminhada diária. Acordei cedo, como de costume, mas parecia que abrir a porta da minha casa e colocar o pé na rua voltara a ser ameaçador. Venci o medo perto das 10 horas, ativei o marcador de contagem de passos dados e quilômetros percorridos e me lancei ao mundo.
Quando cheguei no parque, optei pela faixa de areião que o ladeia, pois no espaço fechado ao trânsito para a prática de atividade física havia gente demais, calculei que não conseguiria manter uma distância segura de potenciais ameaças.
De onde estava podia visualizar o interior do parque. Apesar do decreto do governador, havia grupos jogando futebol, confraternizando com chimarrão, andando de skate, todos sem máscaras. Havia de tudo, menos bom senso e fiscalização.
No sentido contrário ao meu, poucas pessoas caminhando. Cruzei com não mais de vinte, muitas sem máscara, outras com ela cobrindo apenas a boca. Passei por lançadoras de tendências – bandana para papada -, única explicação possível para ter a máscara presa nas orelhas e o pano contendo a região entre o queixo e o pescoço.
Decidi fazer um caminho alternativo de retorno, por fora do parque. Optei pela Avenida Praia de Belas, quase sem transeuntes. Mais tranquilo, até a esquina com a Avenida Ganzo. Vinha um homem sem máscara, busquei o limite do meio-fio para passar, estava a dois passos quando ele espirrou! Sem cobrir a boca ou o nariz. Vi partículas de vírus pairando no ar, tranquei a respiração, xinguei, mentalmente, pois não iria correr o risco de abrir a boca. Acelerei o passo, aumentei os batimentos cardíacos, tirei o frasco de álcool em gel do bolso, ensopei as mãos, espalhei até o cotovelo. Já tinha um quilômetro percorrido além da minha meta. Só queria a minha casa.
Caminhar sempre foi mais do que uma atividade física. É prazer. Aproveito para pensar, planejar, rememorar situações. Construo textos que depois ganham forma no papel. Discuto argumentos com interlocutores. Revejo conflitos e desavenças. Encontro respostas para dilemas. Era assim. Até na caminhada a leveza perdeu o lugar. Antecipo ameaças, sufoco com a máscara, transpiro onde ela encosta, executo procedimentos minuciosos para trocá-la por uma das tantas que levo no bolso de um casaco amarrado na cintura só para ter onde guardar o meu kit Covid (máscaras extras limpas, saquinho para guardar as máscaras usadas, e tubo de álcool em gel).
Hoje, o golpe final se deu na esquina da minha casa, 11 horas da manhã, 31º no termômetro da rua e eu sem uma gota d’água na garrafinha. Mesmo se tivesse, não tomaria depois daquele espirro inconsequente.
Enquanto escrevo, ouço foguetes. Inter e Flamengo devem estar em campo. Independente do resultado, o domingo é rubro negro. O Rio Grande do Sul está rubro negro. Se continuarmos ignorando, em breve não haverá vermelho pintando o nosso mapa. Estaremos cobertos pela cor preta, chorando nossos mortos. Luto.
Não finalizarei assim. Resisto. A leveza que tanto buscamos não está na negação. A situação é grave, cansamos, mas temos frestas de alívio, infelizmente, não no resultado do jogo. O exercício da leveza está em podermos rir de nós mesmos, em reinventarmos prazeres, em resistir à insanidade. Por enquanto, caminho, escrevo, leio para continuar acreditando que um dia poderei fazer mais do que isso.
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