Meu Amigo Secreto


Maria Avelina Fuhro Gastal

Meu amigo secreto foi pego de surpresa, a vida que conhecia parou de repente. Enlouqueceu atrás de álcool em gel, enjambrou máscara, higienizou todas as compras, fechou-se em casa contando os dias para a liberdade, até que desistiu da contagem e se perdeu na sequência dos minutos, horas, dias, meses sempre iguais. Assistiu a troca das estações pelos vidros das janelas, desejou molhar-se na chuva, arrepiar-se de frio, sentir o aroma das flores, ter o sol acariciando a pele.

Meu amigo secreto postou fotos da vida além da sua janela, conheceu espaços ignorados da casa, reviveu alegrias, passeios, encontros, amores, festas, pés na areia, cabelos ao vento, banhos de mar, chocolates quentes na Serra, abraços, beijos, carinhos através das fotos em álbuns há muito esquecidos ou pelas constantes lembranças no Facebook de como a vida era naquele tempo já tão longínquo.

Meu amigo secreto comprou panelas, buscou receitas, fritou o primeiro ovo, inventou combinações de temperos e ingredientes, cansou da cozinha, pesquisou congelados, deliverys, exagerou na comida, esqueceu de comer. Tomou café quando deveria almoçar, almoçou quase na hora da janta, abriu um pacote qualquer de bolacha ou salgadinho na hora que seria a de dormir, mas estava jantando. Deitou-se, não dormiu. Dormiu, perdeu a hora de acordar. Sonhou que estava na rua, despertou no pesadelo que não termina.

Meu amigo secreto pensou ter adoecido quando tossiu, espirrou, quando a garganta ardeu e a cabeça latejou. Cheirou as plantas, a comida, o lixo. Agradeceu por ter olfato. A preocupação, se não roubou o paladar, tirou o apetite. Ou aumentou. Todo mal estar passou a ser fatal, embora não soubesse como teria se contaminado. Nas entregas de comida? Pela correspondência que raramente chegava? Ou pela vez que esticou o pescoço para fora da janela só para ter certeza de que o mundo ainda estava lá?

Meu amigo secreto viu pessoas queridas adoecerem, preocupou-se, desejou a recuperação. Agradeceu as que ocorreram, chorou pelas que não aconteceram. Não fica indiferente a tantas mortes de desconhecidos nem à irresponsabilidade de quem deveria ocupar-se da defesa da vida de tantos brasileiros. Revoltou-se. Não perdoa. Não aceita.

Meu amigo secreto teve medo, angústia, crise de ansiedade, insônia, sonolência. Chorou, cansou, desabou. Reergueu-se, prosseguiu. Esqueceu-se de seus temores, acolheu minha tristeza, aceitou meu riso. Falou de suas fraquezas, ouviu às minhas. Sossegou minha solidão, abriu espaço na dele para mim.

Meu amigo secreto tem vários nomes, diversas faces, inúmeros jeitos. Tem abraços que me acolhem, palavras que acalmam, presença que me tranquiliza.

Queria poder dizer ao meu amigo secreto – Já passou. Mas, não.

Então, meu Amigo Secreto, enquanto não passar, estarei disponível sempre que precisares. Depois que passar, quero estar contigo, tomar um café, jogar conversa fora, rir, planejar os encontros do dia seguinte e todos os outros que se seguirão após a nossa liberdade.

Hoje, te desejo o melhor Natal possível. Não deixa de celebrar. Estaremos juntos como estivemos, sempre, ao longo deste ano. À meia noite pensarei em ti, te abraçarei e agradecerei tua presença na minha vida.

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Maria Avelina Fuhro Gastal

E-mail: avelinagastal@hotmail.com

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