José, Pedro, outros tantos, e nós


Maria Avelina Fuhro Gastal

Quantas pessoas com o nome José conhecemos?

Simplesmente José, ou composto com Antônio, Alberto, Carlos, Luís, Ribamar, Maria, que tanto pode ser para homem ou para mulher, só alterando a ordem.

José da bíblia, da história, da política, da literatura, da música, do cinema, das novelas. José, conhecido, amigo, familiar, pai, marido, irmão, filho.

O José deste texto conheci há pouco mais de dois anos. Tem quase a mesma idade da minha filha, mas não foram amigos, colegas, não frequentaram as mesmas festas ou clubes, não fizeram as mesmas viagens nem os mesmos cursos extracurriculares. Moram na mesma cidade, mas em realidades opostas, com a distância medida em cifrões.

Talvez ele nem lembre de mim naquele dia em que estivemos, pela primeira vez, no mesmo lugar. Eu jamais esqueci dele. Ouvi a crônica escrita por ele. Diferente de todas que eu já tinha escutado. Trazia de um outro mundo a humanidade que insistimos em desconhecer e negar. Um texto completo na técnica, explosivo na denúncia de uma sociedade desigual.

Fui em busca de Vila Sapo. Precisava ler mais José. Encontrei contos pulsantes, com domínio extremo de linguagem culta mesclada com a voz de narradores e personagens da periferia. Na violência, na fome, a presença das paixões, dos desejos, do afeto e dos cuidados. O humano que há em todos, mas que nós apagamos naqueles que não se parecem conosco.

É esse José que conta a história de Pedro e de Marques. Os dois são supridores em um supermercado de Porto Alegre. Mantêm as prateleiras abastecidas de tudo aquilo que consumimos, mas eles não podem comprar. Trabalham, e muito, mas a hora deles não vale o suficiente para garantir-lhes uma refeição adequada, uma moradia com condições básicas de salubridade e conforto.

Os mecanismos de agravamento das diferenças sociais, e a nossa conivência com eles, explicitados pela experiência de total descrença com a possibilidade de vida digna através do trabalho, posto que é ferramenta de exploração para acumulação de capital.

Os Supridores, livro de José Falero, traz a periferia para o nosso pátio, para as ruas onde estacionamos nossos carros para ir ao cabelereiro, ao restaurante, ao teatro, à escola dos nossos filhos. Entre ruas arborizadas, shopping centers, prédios com jardins, brinquedotecas, sistemas de segurança e áreas de lazer, sufocamos espaços com esgoto a céu aberto, becos desordenados, moradias improvisadas, crianças e jovens sem escola, sem oportunidades.

Entendemos como violência o assalto à mão armada, o arrombamento. Negamos a contida na exploração do trabalho, na oferta de bens e produtos que só podem ser adquiridos por uma pequena parcela, que somos nós. Agredimos com nossas casas, nossos carros, com as roupas que usamos, com o tanto que compramos em carne, frango, frutos do mar, ovos, verduras, frutas, arroz, feijão, sabonetes, papel higiênico macio de folha dupla com perfume, iogurte com ou sem pedaços de frutas, bombons recheados, chocolates nacionais ou importados, sucos com polpa de fruta natural, queijos Cottage, Camembert, Gorgonzola, Fetta, Provolone.

No romance de Falero as desigualdades do sistema colocam os protagonistas em situações limítrofes pela falta de dinheiro para consertar a fechadura da casa, tapar os buracos das paredes, alimentar os filhos, acreditar na possibilidade de “melhorar” de vida.

Vivemos cercados de Josés, Pedros, Angélicas, Chokitos e outros tantos. Eles suprem nossas necessidades, qualquer que seja. Abastecem prateleiras, limpam nossas casas, varrem as ruas, entregam jornais, lavam nossos carros, cuidam dos nossos filhos, cozinham o que comemos. Trabalham, trabalham, trabalham, mas comem, moram, vivem mal.

Não vejo Os Supridores como denúncia. Nada nele é novidade. O vejo como desestabilização de uma tolerância absurda ao inaceitável, de ambos os lados.

Os Supridores é ficção. E da boa. As personagens enredam-se em conflitos e desejos, a violência não é amenizada, aparece de forma crua nas cenas da cidade, nas mentiras por trás de imagens de bom cidadão. Há domínio da linguagem, do ritmo da narrativa. Ao colocar Porto Alegre como local da ação nos joga nas cenas pois identificamos os lugares, mas funciona como narrativa de qualquer centro urbano do país.

Em todo o Brasil há a promessa de uma vida melhor espalhada por slogans, discursos, valorização das conquistas individuais com o validação do conceito de meritocracia. O que a propaganda não mostra é que muito poucos encontrarão essa vida, mesmo que trabalhem como loucos. O espaço nela já está ocupado, não cabe mais ninguém. Em todas as camadas sociais, em todas as atividades que gerem lucro, a premissa é uma só: se não há lugar para todos, não ameace minha posição ou eu acabo com você. Facções e classes sociais operam da mesma maneira para fazer valer seu lugar de privilégio.

Leia Os Supridores. Acrescente José Falero a sua lista de Josés da literatura. Ele construiu o direito de estar nela.

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Maria Avelina Fuhro Gastal

E-mail: avelinagastal@hotmail.com

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