Maria Avelina Fuhro Gastal
“O destino é o que embaralha as cartas, mas nós somos os que jogamos.”
Consta que a essa frase é de Willian Shakespeare. Não sei precisar o ano, mas algo entre o final do século XVI e o início do XVII.
Até hoje usamos metáforas ou frases de efeito que têm por base jogos, sejam de cartas ou de tabuleiros. Expressões como “dar as cartas”, “xeque-mate” são usadas em contextos de vida, e plenamente entendida por quem as escuta.
Não sou nem um pouco afeita a qualquer tipo de jogo, me faltam paciência, concentração, persistência e pensamento estratégico. Nas rodas de War, entregava meus exércitos ao inimigo com alegria só para me livrar daquela pasmaceira sem fim.
Há, no entanto, um jogo com cartas que me diverte. O nome é Dorminhoco. O jogo é simples. Separa-se de um baralho normal, uma trinca de cartas do mesmo naipe para cada jogador. Deve-se separar também um coringa. As cartas são embaralhadas e distribuídas entre os jogadores, sendo que um ficará com 4 cartas e iniciará o jogo. Este jogador escolhe uma de suas cartas e passa para o jogador a sua esquerda. O jogo prossegue, sempre com um jogador passando uma carta para o jogador seguinte. Quem recebe o coringa, deve ficar com ele por uma rodada, devendo passar outra carta. Quando um jogador forma uma trinca deve baixá-la, viradas para baixo, de maneira discreta. Os demais jogadores devem fazer o mesmo. O último a baixar suas cartas será o “Dorminhoco”. O castigo na casa dos meus pais era levar uma marca de rolha no rosto. Levei várias “rolhadas”, dei outras tantas. O perdedor final era aquele com mais marcas pela face. Às vezes, expandíamos para o pescoço, braços e pernas por absoluta falta de espaço no rosto para qualquer outra marcação.
Como Shakespeare me levou ao Dorminhoco? Desses caminhos que o pensamento faz, costurando fatos, ideias, vivências, memórias e sentimentos.
Na realidade, a ordem foi esta: Shakespeare me levou a Willian Shakespeare, que me levou à frase, que me fez pensar em destino, dele nos vi jogando e, por fim, a única ligação possível era o Dorminhoco.
Shakespeare foi a segunda pessoa a receber a vacina contra a Covid-19 no Reino Unido. A notícia do dia, início da vacinação em algum lugar do mundo, une o local e o nome do segundo vacinado ao maior dramaturgo da história. Isso pensei como destino, quem sabe saudando a possibilidade de esperança. Cartas foram jogadas para que houvesse a aplicação da vacina, a única possibilidade, até o momento, de retomarmos nossas vidas.
Nosso destino foi ter nascido aqui. O que temos feito do país passa pela forma como temos jogado. O que causamos ao Brasil reverbera em nós, população. Morremos às pencas contagiados pelo vírus, mas o jogo armado não considera isso relevante. E nunca ocultaram isso.
Somos jogadores de Dorminhoco. Buscamos entre nós a quem “rolhar”. Deixou de ser brincadeira. Passou a ser uma forma de ataque. Enquanto isso, não são só negros ou pobres, não são só velhos ou incapazes que morrem. À morte desses já temos anticorpos. Nem só comunistas, ou fascistas. Morrem avós, pais, filhos, irmãos, familiares, amigos, ídolos, conhecidos, colegas, vizinhos. A vida segue, afinal não passa de uma gripezinha que não atinge quem não é maricas.
Todos os dias levamos diversas marcas de rolha. Já não cabem mais em nossos rostos. Dorminhocos, nos distraímos em um jogo de morte. Eles jogam com nossas vidas. E não acordamos nem assim.
Chegará o momento em que sairemos do jogo, ou por ter sucumbido no caminho ou por estar chorando a morte de alguém muito próximo.
Que o destino seja generoso conosco, pelo menos uma vez. Só acreditarei nessa possibilidade se o nome do primeiro vacinado, aqui, não for Jair. Se for, terei certeza de que as cartas continuam sendo dadas por quem não respeita a nós nem à vida.
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