Maria Avelina Fuhro Gastal
Se a Terra é redonda ou plana, tanto faz, contanto que a órbita seja em torno do meu umbigo.
Se na vaga cabem dois carros, azar de quem não chegou primeiro, coloco meu carro bem no meio para não ter que manobrar muito.
Se usar produtos descartáveis é prejudicial ao meio ambiente, dane-se, eu que não vou estragar minhas unhas na pia.
Que mal tem em jogar uma bituca de cigarro ou um papel de bala no chão? Afinal, com tanta gente sem emprego, é bom que os garis tenham o que fazer. Ainda mais que sou eu quem paga o salário deles.
Professor não tem que fazer greve. Se o Governador não paga o salário, eles que encontrem uma outra maneira de protestar. O que não dá para acontecer é aguentar as crianças em casa.
Trabalho não falta. É que essa gente não é muito de trabalhar mesmo, prefere pedir ou viver de bolsa-família.
Pra que tanto barulho com o aquecimento global? Liga o ar, vai para a praia, reforça o bronzeado, viaja atrás de frio ou neve. Tem gente que só sabe reclamar.
Por sorte, a vaga ao meu lado no estacionamento do supermercado está livre. Largo ali o carrinho de compras. Vê se tenho cara de guri encarregado de levar os carrinhos para longe das vagas.
Deixa a louça, não precisa lavar. Amanhã a faxineira lava. Ela já passou o fim de semana lavando a roupa e a louça na casa dela. Tá acostumada.
Por que pedestre acha que eu tenho que parar para eles passarem? Será que não entendem que se estou de carro é porque tenho pressa. Ainda mais com essa chuva. Quero chegar antes das tranqueiras e alagamentos.
Vai ser muito azar se um velho, um aleijado ou uma grávida resolver estacionar aqui logo agora. São só uns minutinhos, já tiro o carro da vaga.
Não sei se os pensamentos são esses, mas o comportamento é. Se ficar bom para mim, o resto que se dane.
Não posso afirmar que seja uma característica exclusiva do brasileiro, mas que, em um único dia, várias dessas situações se repetem nas nossas cidades e casas, não tenho dúvidas.
Sem nenhuma pretensão de um estudo sociológico, pensei em duas hipóteses para explicar esse comportamento. São apenas suposições, como podem ser muitas outras. Talvez você tenha ideias diversas. Quem sabe se dividirmos o que pensamos, possamos começar a promover pequenas mudanças. Nem que sejam em nós mesmos.
Minha primeira hipótese é mais psicanalítica, com o perdão dos especialistas. Acredito que possamos sofrer de doença de umbigo. Temos uma fixação tão arraigada na nossa relação com a mãe, que nos foi impossível romper o cordão umbilical. No entanto, projetamos para o mundo que nos cerca essa necessidade de termos a existência centrada em nosso próprio umbigo.
A segunda hipótese é mais ligada às condições climáticas. Moramos em um país essencialmente tropical. Nossos corpos ficam à mostra por muitos períodos. O umbigo divide os dois hemisférios, a parte de cima, onde estão o peitoral, os seios, e, a parte de baixo, onde se encontram pernas, coxas, bundas e outras coisitas mais. O umbigo situa-se no abdômen, que tanto pode ser um tanquinho, como pode ser composto por camadas de carne ou litros de cerveja. Estando no meio dos dois hemisférios, ele é a parte central do nosso corpo e dá ao outro uma medida aproximada do que pode encontrar olhando para cima ou para baixo. Tudo parte do umbigo. Talvez por isso, ele receba adornos. Sempre é bom causar uma boa primeira impressão.
Seja qual for o motivo, o umbigo nos torna insuportáveis. Não enxergamos o outro, não nos importamos com ele, não temos nenhum respeito por ele. Pior, nos torna acomodados. Não lutamos por nada. O que não está no nosso umbigo não nos diz respeito. Não nos incomodamos com a fome do outro, com a desigualdade social, com a violência contra negros, mulheres e crianças. Negamos o racismo, a homofobia. Usamos o nosso umbigo para cravar o estandarte da indiferença.
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