Maria Avelina Fuhro Gastal
Por uma década, entre o início dos anos oitenta e noventa, nossos Natais seguiam o mesmo ritual. Meus pais moravam em uma casa na zona sul de Porto Alegre, com um pátio absurdamente maravilhoso. Vou tentar descrever para quem não conheceu, mas já sei que não chegarei nem perto do que era. Saindo pela porta da cozinha, entrava-se em um espaço com uma mesa de doze lugares e bancos de madeira. À direita, tinha um jardim que fazia divisa com a sala de estar, que também tinha acesso para o pátio, mas nunca saíamos por ali. Logo após àquela área para refeições, o espaço ganhava largura. De um lado ficava a churrasqueira, com uma mesa redonda de apoio, um jogo de estofados em couro marrom e várias cadeiras avulsas. Na frente desse espaço, uma área com piso de cimento, demarcado por tinta branca, que os adultos usavam para jogar vôlei ou futebol com os amiguinhos do meu filho. A partir daí, o pátio ganhava vários níveis, ligados por degraus ou rampas de grama. Ficavam ali recantos, o canil, as árvores frutíferas, a parreira e, no último nível, a piscina.
Esse pátio ganhava destaque nas noites de Natal. Não era ali que celebrávamos, a reunião e a ceia aconteciam nas salas da casa, mas era naquele pátio que a mágica acontecia.
Perto da meia-noite, meu pai ia com meus filhos para o pátio e procuravam nos céus sinais do Papai Noel. Aguçavam os ouvidos para ouvir os sinos do trenó, os barulhos das renas, o HO,HO,HO do bom velhinho. Enquanto isso, nós ficávamos na sala distribuindo os presentes na frente da árvore de Natal. Depois, nos reuníamos com eles. Até hoje, tanto o Eduardo quanto a Renata lembram da vez que viram o trenó cruzando o céu. Ainda são capazes de contar em detalhes e eu reconheço nos olhares e na emoção deles as crianças que foram e a importância dessa memória e daqueles Natais. Quando entrávamos na sala, os presentes estavam todos ali. Papai Noel tinha conseguido novamente nos enganar.
Em uma das vezes em que colocávamos os presentes na sala, havia uma caixa enorme com o meu nome na frente. Se fosse hoje, poderia ter pensado em uma TV com infinitas polegadas. Mas era final dos anos oitenta ou início dos noventa, então esse monte de polegadas nem me passaria pela cabeça. Fiquei mais curiosa e excitada do que qualquer criança naquela sala, mas tinha que me conter, afinal, primeiro os presentes dos meus filhos, que nunca eram poucos.
O que conteria aquele vasto pacote? Era um tempo de vacas magras para mim: casamento afundando, autoestima esbugalhada, tipo um buraco de onde eu não sabia como sair. Seria um Fuca? Um jogo de malas e um punhado de dólares para viajar pelo mundo? Uma vida nova? Sei lá o que pensei, mas parecia que naquele pacote estaria o tanto de alegria que eu andava precisando.
Chegou minha vez. Recebi o presente e comecei a rasgar o embrulho. Era papel que não acabava mais. Nunca chegava ao conteúdo. Depois de transformar o lindo papel de presente em tiras disformes de papéis rasgados sem nenhum cuidado, o presente se materializou nas minhas mãos e em frente aos meus olhos. Um jogo de panelas.
Um jogo de panelas. Um jogo de panelas. Um jogo de panelas com oito peças de tamanhos diferentes. Um jogo de panelas em alumínio com alças e suporte das tampas em preto. Um jogo de panelas. Sem cor, sem charme. Nem mesmo um livro de receitas acompanhando. Nem mesmo revestimento em teflon. Apenas um jogo de panelas.
Presente pode ser útil, pode ser caro, pode ser grande, pode ser qualquer coisa. Mas, para mim, não tem que ser nada disso. Ele tem que fazer sentido. Tem que falar da relação que tenho com quem me presenteia ou a quem presenteio. O valor não está no custo, mas no gesto, na intenção. Não precisa ser comprado. Pode ser produzido, fazendo com que seja só para mim. Não me oponho aos comprados, desde que a essência não esteja na aquisição, mas na escolha. Quero a cada presente que dou ou recebo, sentir que é por afeto, que há a troca e não pura obrigação.
Era um jogo de panelas. Confesso que minha decepção foi visível. Tanto que alguns dias depois, meu pai me deu um lindo vestido em jeans. Até hoje penso que foi um jeito de pedir desculpas.
Já se vão quase trinta anos. Ainda tenho uma daquelas panelas. Guardo como relíquia. Não percebi na época e talvez meus pais não tenham tido a intenção, mas aquele presente entra na lista das coisas que me ajudaram a desistir do que já não funcionava, a trazer para mim a responsabilidade de viver melhor. Um caminho que ainda percorro, buscando novas trilhas e companhias.
Pensando melhor, talvez meus pais reconhecessem em mim algo que eu ainda não havia descoberto. Tenho o maior prazer em cozinhar para as pessoas que amo, gosto de transformar receitas e inventar algo novo. Amo comprar panelas, cortadores de legumes, apetrechos de cozinha. Escolho os coloridos e, com eles, preparo mais do que comida, preparo um jeito de dizer às pessoas o quanto elas são especiais para mim e as quero na minha vida.
Por isso, vou parar por aqui e temperar o peru para a nossa ceia, com a esperança de que os Natais na minha casa produzam um pouco da magia que vivíamos na casa dos meus pais.
Bom Natal para cada um de vocês, com muito afeto em cada presente.
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