Maria Avelina Fuhro Gastal
“Noite de vento, noite dos mortos.” É com essa frase que Bibiana, personagem de Érico Veríssimo em O Tempo e o Vento lembra da avó, Ana Terra.
Quem é do Sul tem intimidade com o vento. Dá a ele nomes, significados, vislumbra presságios. É cantado em Vento Negro, de José Fogaça e declamado em Ecos do Vento, de Ilton Dellandré, e em tantas outras canções, crônicas, poesias, novelas.
O Minuano é um lamento. Traz nele um ar gelado, cortante na pele. Parece carregar angústias e saudades. Ele chora e nós nos recolhemos.
Convivemos com ventos frios, intensos, devastadores, seguidos de ventos repletos de peso úmido e quente que em nada aliviam a sensação de mormaço. Entramos em uma sala de caldeira, sem aberturas, em temperatura elevada, com ventiladores jogando ar abafado e molhado que gruda em roupas e corpos.
No litoral, suportamos o Nordestão. Rápido, constante. Voam cadeiras, chapéus e guarda-sóis. Levanta a areia fina. Mormaço, calor, areia, suor. Ficamos empanados. Prontos para fritar ao sol.
Meu colégio ficava em uma parte alta da cidade. Para chegar nele, tinha que cruzar, a pé, o Viaduto da Borges de Medeiros. Um trecho de corredor de vento entre o Guaíba e a zona sul de Porto Alegre. Duas mãos, apenas, para segurar livros, cadernos (não existiam as mochilas de hoje), saia pregueada, curta, e cabelos longos, crespos e soltos. Por sorte, toda vez que a saia voou feito paraquedas e fiquei de bunda de fora, não devo ter sido reconhecida. Os cabelos cobriam meus olhos, nariz e boca.
Mas há um vento que desconheço o nome. Começa nas semanas finais do mês de outubro e prolonga-se até o Dia de Finados. Este ano, em alguns dias, foi muito intenso. Talvez em memória dos quase cento e sessenta mil brasileiros mortos pela Covid-19. Seria uma ventania de maus presságios ou de reverência? Ou de ambos, já que estamos à deriva para enfrentar a pandemia.
Esse vento de outubro aguça saudades, amplia ausências. Sopra vozes que, mesmo inaudíveis, ecoam em nós. Elas estão nas nossas memórias, o vento as desvenda. Parece querer nos libertar. Aguça lembranças. Voltamos a um luto que jamais é finalizado, encaramos a sua existência, revisitamos a perda e somos liberados para experimentar tudo que ainda temos de vida nos meses de sol que se seguem após o Finados.
Não cabe a ele o nome de melancólico.
Se tivesse que escolher algum, seria acalanto, reconhece a dor, nos envolve, sopra constante, até que adormecemos. Ao despertar, encaramos a continuidade da vida sem tantos que perdemos pelo caminho.
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