Maria Avelina Fuhro Gastal
Por certo não tenho lembrança, mas imagino que quando dei meus primeiros passos acreditava que ali era o fim do mundo. Não sei quando meus olhos puderam ver além dela, nem mesmo o que enxergavam, mas, talvez, tenha sido minha primeira experiência de muito a explorar. O caminho não era fácil, implicava levantar uma perna, enquanto me equilibrava em outra e comandar um corpo que ainda parecia não fazer parte de mim para, depois de várias tentativas e muito esforço, alcançar o outro lado. Como não sabia muito o que fazer ali, só me restava empreender o mesmo caminho de volta. Tão logo conseguia retornar, decidia começar tudo de novo. E assim devo ter agido por muito tempo. Não são memórias. São certezas. Assim todas as crianças avançam. E eu já fui uma delas.
Depois de dominado o caminho de vai e volta, ocupei a superfície. Estreita, reta e regular. Primeiro, amparada por mãos cuidadosas, depois, buscando o equilíbrio em meus braços abertos como asas, prontos para me lançar em voo. Mas ainda não sabia voar. Explorava cada passo com cuidado até me sentir valente o suficiente para aumentar, um pouco, a velocidade de cada um deles. Quando consegui correr, consegui saltar, primeira tentativa de desgrudar do chão.
À medida que crescia, ela foi trincheira, balcão de loja, passarela, banqueta. Naquele espaço pequeno, estreito, reto e regular cabia toda a nossa imaginação. E sem adultos por perto. No máximo nos acompanhavam de longe pelas frestas das cortinas.
Minha última lembrança é do início dos anos setenta. Primeiro achei que estar entrando na adolescência tivesse feito com que eu renegasse o mundo infantil, mas não. Na realidade vivemos em uma cidade sem muretas.
De repente elas deixaram de estar livres e passaram a suportar pesadas barras de ferro, ou ganharam camadas de cimento até atingir o tamanho necessário para isolar as famílias do mundo além delas. Foram adornadas com fios e arames e, por último, cobertas com energia. Elétrica, não de vida. Essa ficou perdida nas risadas e vozes que ainda ecoam nas memórias de quem começou a explorar o mundo por ali.
Tento imaginar como serão as memórias das crianças de hoje que, como detentos em celas, têm a imagem do mundo exterior cortada por barras.
Clique aqui para seguir esta escritora
Pageviews desde agosto de 2020: 280209
Site desenvolvido pela Editora Metamorfose