Maria Avelina Fuhro Gastal
Que horas te pego? Almoço aqui em casa domingo? Nos encontramos no parque, então. Compro ingressos pro show? O happy vai ser no mesmo local de sempre. Vem jantar aqui. Cineminha no final de semana? Embarco na quinta. Amanhã não estarei em casa. Vou passar o fim de semana na Serra. A Alice pode dormir aqui? Levo a sobremesa. Depois do jogo vamos no Barranco. Eu te dou carona. Não achava lugar para estacionar. Nos encontramos no Sarau Elétrico, oito horas no Ocidente. Conheci um restaurante novo, muito bom. Claro que vou ao teu aniversário.
A lista de frases caladas não tem fim. No início pareciam adormecidas. Hoje, estão em coma. Glascow indefenido. Alguns de nós, mantêm os olhos abertos espontaneamente, reagem à dor, às palavras, outros não respondem adequadamente aos estímulos de sofrimento de grande parte da população. Desorientados no tempo todos estamos. Alguns, também no espaço, pensam estar vivendo no mundo pré-pandemia. Esses mesmos usam discursos inapropriados, emitindo sons absolutamente incompreensíveis frente à realidade. Não dá para avaliar a resposta a ordens, pois elas são confusas, contraditórias e irresponsáveis. Melhor medir essa questão avaliando a escolha por uma postura de respeito às orientações dos órgãos internacionais em saúde. Por aqui estamos nas mãos de militares e veterinários para desorientar a população. Se atingirmos o índice abaixo de 8 na Escala de coma de Glascow, seremos entubados. Todos. Um país inteiro sem chance de respirar por não ter enfrentado a pandemia com rigor científico, prorrogando o horror, acabando com a economia e com vidas.
Às vezes, alguns filmes me vêm à cabeça. Pode ser uma tentativa de dar sentido a uma experiência tão surreal. Nosso momento beira ao inverossímil, o que prova que a realidade pode ser muito mais dura e cruel do que qualquer ficção.
Lembram do filme O Feitiço do tempo (1993)? O protagonista estava preso no Dia da Marmota. Acordava com a esperança de um novo dia, mas ele se repetia e se repetia. Ou do filme O Náufrago (2000)? Após um acidente aéreo de um avião da FEDEX, um único sobrevivente permanece por cerca de cinco anos em uma ilha inabitada, transformando em companhia uma bola onde rabisca traços de um rosto humano e batiza de Wilson.
Queria que estivéssemos no Dia da Marmota. Acordaríamos por um longo período no mesmo dia, mas sabendo disso, teríamos a chance de alterar pequenos eventos que teriam mudado o nosso futuro. Mas não. Estamos presos em um tempo indeterminado. Não temos nenhuma chance de mudar o que passou para aliviar o presente. Só podemos encarar o agora com todo o medo, toda a incerteza que ele carrega. Mesmo assim, temos a chance de efetuarmos pequenas mudanças para nos garantir alguma possibilidade de futuro. Difícil, mas viável se também mudarmos em nós prioridades e crenças.
Para suportar o isolamento social, inventamos nosso wilson. Está nas telas dos smarts fones, dos tablets, PCs e da, obsoleta e resgatada, televisão. As mensagens, os vídeos, as vozes preenchem vazios. Para outros, nas páginas dos livros as personagens servem de companhia. Ou, quem sabe uma página vazia na qual são colocados todos os wilsons criados, todos os sonhos adiados. Para quem não está só, o desejo de transformar o outro em wilson, sem voz, sem vontade, apenas presente para esconder a solidão. Ou transformar-se em wilson para não sentir, não temer, ser presente e se perceber amado.
Mas essa é a parte, apesar de dura, confortável no caos. Para muitos, o filme que os representa é Parasita (2019). Muito antes da quarentena já viviam isolados socialmente. Ocupam as periferias, sobrevivem em meio ao quase nada, não podem projetar o amanhã, pois não sabem como alimentarão os filhos hoje. Sempre foram invisíveis para a maioria de nós. Só não descobriram na sua invisibilidade a mesma força que o vírus tem para desestruturar o mundo, o mercado financeiro, as nossas vidas. E, ainda hoje, não estamos no mesmo barco. Estamos confinados com conforto, com comida, pela saúde e pela vida. Eles vivem enjaulados na miséria. Sempre.
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