Maria Avelina Fuhro Gastal
A indignação era procedente. A tentativa de desqualificar as mulheres é constante. Em situações profissionais é visível a grande maioria de cargos de chefia ocupado por homens, mesmo quando as mulheres são em número superior e denotam capacidade intelectual. Quando assumem posições de destaque, é comum serem tratadas por “querida”, “meu anjo” quando o interlocutor é homem. Uma tentativa de nos colocar de volta à posição de “desvalidas amadas”, desde que subservientes.
Duas expressões corriqueiras denunciadas como abusivas, desrespeitosas. A força das palavras mostrando todo o preconceito subjacente. Não havia discordância, o grupo, composto por mulheres e homens, balançava a cabeça de forma afirmativa ou exibia expressões faciais de aprovação.
Daí, veio a frase que finalizaria o desabafo:
— Chama de querida as tuas nêgas.
Em que momento ficou estabelecido que as mulheres negras não estão entre as que devem ser respeitadas? Desde o início da nossa história de povo brasileiro. A mulher negra era propriedade de um senhor que fazia dela o que lhe agradasse. Manteve-se assim ao negar-se educação e condições de trabalho após a abolição da escravatura, que só deixou de existir como política de propriedade, mas jamais como reconhecimento da condição humana do povo escravizado. Permanece na exploração das curvas das mulheres negras como caminhos de prazer e perdição, preservando a suposta pureza das “queridas” e dos “meus anjos”.
A primeira a se manifestar sobre o racismo contido na expressão “tuas nêgas” foi a única mulher preta na sala. Depois dela, uma mulher branca marcou a força do racismo nas palavras por ele estar inserido na nossa estrutura, a seguir, um rapaz branco disse ter aprendido com a mãe, que é professora, a não usar determinadas palavras ou expressões desde pequeno. Depois dele, todos que falaram buscaram justificativa na escolha de vocabulário, no uso impensado de palavras por serem corriqueiras ou, ainda, por ser desconhecido seu real significado, dando como exemplo a palavra judiaria. A apoteose foi quando um dos homens brancos declamou uma música de Lupicínio Rodrigues que usava “judiaria” como rima para “amaria”.
Embora nenhuma delas deva ser aceita, não há equivalência possível entre “judiaria” e “tuas nêgas”. O fato de estarem em músicas, poemas, piadas não as valida. Buscar no passado o uso delas para justificar a permanência é negar-se a evoluir. Açoites, cinto de castidade, mulheres em fogueiras já foram aceitos e tido como normais e necessários para o bem do sistema, ainda, vigente
Nenhum pedido de desculpas, nenhum reconhecimento do preconceito, nem uma sombra de compreensão do desrespeito às mulheres negras.
O mesmo grupo que enxergava problemas graves (e reais) no uso de “querida” e “meu anjo”, virava o rosto para a punhalada em todo um grupo de mulheres que, por serem pretas, em grande número pobres e desvalidas, são entregues por mulheres brancas ao uso e abuso da sociedade.
A construção lexical de uma nação traz questões sociais, econômicas, culturais, históricas e ideológicas. Acolhemos e usamos as palavras porque estruturalmente nos fazem sentido. Transformamos em pejorativas para agredir, desqualificar.
Em um grupo que se reúne para ler poesia, ouvir canções e homenagear grandes nomes da literatura e da música não há desconhecimento da força da palavra, da importância da escolha adequada de vocábulo para melhor expressar uma ideia ou sentimento. Não há desculpas para a falta de um pedido de perdão. Esconder-se atrás da discussão do uso popular da palavra é validar a sociedade em que vivemos.
“Tuas nêgas” devolve a mulher preta e o seu corpo para o deleite dos senhores, enquanto nós, brancas, bradamos “meu corpo, minhas regras”. Meu corpo branco, minhas regras. Quer ir além? Vai com as “tuas nêgas”.
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