Ainda estão aqui


Maria Avelina Fuhro Gastal

Há três semanas, assisti ao filme Ainda estou aqui.

Desde lá venho ouvindo ou lendo críticas ao filme por não trazer elementos que denunciem as desigualdades sociais, por se limitar a contar a história de uma família branca, classe média alta, por não abordar as atrocidades sofridas por classes populares e comunidades indígenas à época da ditadura militar.

O filme se baseia no livro homônimo, escrito por Marcelo Paiva, que aos 11 anos de idade vivenciou a experiência de ter sua vida familiar destroçada pelo desaparecimento de seu pai, Rubens Paiva, levado para interrogatório, sem jamais ter retornado para casa.

A história do período mais sombrio da nossa história tem que ser contada por vários ângulos, focar nos diversos segmentos atingidos pela brutalidade de um governo autoritário. Mas o livro fala da experiência familiar de um menino branco, de classe média e essa é a história a ser contada ou seria um outro filme.

Pensando no país, penso ser oportuno contar a história pela ótica de uma classe que se vê blindada contra atrocidades vindas dos Poderes. Se a questão social, étnica ou dos povos originários fossem relevantes para a classe dominante, não estaríamos vivendo no Brasil que vivemos.

As imagens da família planejando seu futuro, projetando a casa de seus sonhos, acolhendo um cachorrinho, mesmo contra a vontade do pai, usufruindo da vida à beira mar, comendo pizza, reunindo amigos, pensando no futuro dos filhos são partes da nossa vida. Ver que tudo isso pode acabar, mesmo para nós brancos, privilegiados mostra que em um regime ditatorial não há habeas corpus que garanta a integridade do nosso cotidiano.

O silêncio respeitoso e chocado que se instala nas salas de exibição traduz não só a indignação com o que assistimos, mas também o temor de pensar que poderíamos ter sido qualquer um de nós vítimas daquele momento. E muitos conhecidos nossos foram. Sobreviveram, mas as famílias trazem traumas pelo vivido, pela incerteza de retorno daquele familiar levado para interrogatório por pensar, por discordar ou por nada, afinal não precisavam de motivo algum para perseguir, bastava supor e, na suposição, punir, torturar, matar.
Pouco antes, eu havia assistido à Ainda somos os mesmos. Nesse filme fica clara a participação ativa em forma de apoio financeiro e operacional ao golpe militar de 64 por parte da sociedade civil e da conivência com os métodos utilizados para barrar a “ameaça comunista”. Nada diferente do que estamos vivendo nos últimos anos.

Nenhum golpe militar acontece só pelos quartéis. Há um envolvimento intenso da sociedade civil, alguns para manter ou aumentar privilégios, outros por total ignorância, sem perceber que serão descartados assim que o golpe vencer. Lembram do bolo que estava a crescer durante a ditadura militar para depois ser dividido? Basta olhar em volta para ver que nem migalhas sobraram para dar um pouco de dignidade de vida para milhões de brasileiros.

Ainda estou aqui é humano, é respeitoso, é triste. É assustador. Em meio a notícias de planos de execução de ministro do TSE e STF, do presidente e vice eleitos pelo voto popular, financiamento da tentativa de golpe pelo agronegócio e um número expressivo de brasileiros que ainda apoiam essas ideias e atitudes, percebemos que eles ainda estão aqui. E nenhum de nós está a salvo, nem você que se enrola na bandeira, fala em nome de Deus e aceita assassinato como opção.



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Maria Avelina Fuhro Gastal

E-mail: avelinagastal@hotmail.com

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