Maria Avelina Fuhro Gastal
Não sei viver sem as palavras. Por vezes nos divertimos juntas, em outras, nos emocionamos, em alguns momentos não nos entendemos, corremos o risco de ferir ou de sairmos machucadas.
Existem palavras que trazem o próprio aconchego. Ninho, casulo, casa, lar envolvem como um cobertor macio que abriga meu corpo nas noites frias.
Algumas insistem em se mostrar duronas como rochas à beira do mar, que impávidas se deixam tocar pelas ondas como se por elas não pudessem ser atingidas. Ósculo é assim. Esconde-se na austeridade para não demonstrar sua doçura.
As coquetes me divertem. Têm um quê de malícia que escapa pelos lábios de quem as pronuncia: coquetel, brioche, abajur insinuam-se como flores para serem admiradas, mas não tocadas. Naturalizaram-se, mas insistem em manter seu ar esnobe.
Têm as furiosas, rosnam como fera enjaulada, que apesar do barulho não podem nos ferir: trovoada, capitão, bigorna, paralelepípedo. Mostram-se fortes para manter o controle.
Outras embalam nossas vidas com lembranças e cheiros, mas só as crianças percebem sua força: carrossel, gangorra, hortelã, novelo, amarelinha, brigadeiro, pudim. São doces, suaves e escorrem pelos lábios com leveza e um ar de peraltice.
As permanentes me assustam, têm a força do compromisso e o desespero da renúncia: aceito, nunca, sempre. De tão intensas muitas vezes não permitem que outras, que podem lhes aliviar o peso, cumplicidade, altruísmo, empatia, ocupem um lugar de destaque. Se soubessem viver com mais suavidade, relaxariam.
Diferente das coquetes, têm aquelas que são divertidas por serem escrachadas, não se importam com que os outros pensam. Juntam suas letras e sílabas com um ar de displicência, mas se impõem com valentia: bagunça, barulheira, engradado, geringonça.
Há as criadas pelas crianças para dar conta de um mundo que ainda tem muito para descobrirem: bilico (eu – 6 anos – epílogo), moca (Eduardo – 2 anos – cama), enroladinha (Renata – 2 anos – fita métrica), sanbuda (Alice – 2 anos – sanduba), esquentadura (Miguel – 3 anos – lareira).
As palavras não me cansam. Elas me alimentam, divertem e distraem. Com elas construo narrativas, dou voz a experiências.
Seguido elas me faltam. Não encontro nenhuma que dê conta de tanta desigualdade social. Ao tentar falar da fome, da violência, do racismo, dos abusos, da falta de oportunidades igualitárias, dos muros sociais que empurram para a periferia um número sem fim de pessoas privadas de saneamento básico, de moradia adequada, de um ensino de qualidade, de atendimento básico de saúde, de condições dignas para a vida humana, nenhuma palavra é suficiente para revelar a dor de quem é jogado para fora como entulho.
Discursos, promessas são um amontoado de palavras vazias. Só um grito uníssono de todas as vozes caladas poderá dar força a uma palavra a ser criada, que vá além do Basta!
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