Maria Avelina Fuhro Gastal
Essa semana, a convite da Paris de História Editora, fiz a mediação do debate sobre o livro “Quando você escutar essa música”, de Lola Lafon.
O livro nos leva ao Anexo Secreto onde a família Frank viveu na tentativa de sobreviver à ocupação nazista da Holanda. A autora passou a noite de 18 de agosto de 2021 na casa, hoje Museu Anne Frank, vivenciando vazios repletos de uma “sensação de excesso”.
Mais do que uma descrição do espaço, o livro de Lafon nos oferece inúmeras camadas para reflexão, impossíveis de explicar. Parafraseando Robin Gibb em uma entrevista (2009) sobre a música “I started the joke”, tentar explicar as camadas do livro, seria depreciá-lo. Cada um deve encontrar as camadas que revelam sua própria história.
Lola Lafon desconstrói a personagem Anne Frank para que possamos perceber e enxergar a menina-adolescente Anne, privada do direito de viver sua vida além de paredes, de janelas cobertas com tecido opaco, submetida a longos silêncios e períodos de imobilidade.
Impossível não nos levar de volta ao Diário de Anne Frank e, guiados pelas reflexões de Lafon sobre o ato de escrever, encontrarmos, tanto no Diário quanto no livro da Lafon, ecos de nossas necessidades de pertencimento, de nossos silêncios familiares e pessoais, de nossas atitudes frente à barbárie e às desigualdades, de nossa intolerância ao diferente de nós.
São tantas possibilidades de leitura, tantos caminhos a percorrer, tantas verdades a enfrentar.
No meio de inúmeras questões, escolho para compartilhar com vocês a percepção do que é essencial.
Fugir, se esconder, requer o planejamento do que levar. É dito: leve o essencial. Mas é exatamente isso que somos obrigados a abandonar. Levamos o básico para sobreviver, documentos, algumas roupas, medicamentos e alimentos. O essencial não cabe em uma fuga.
O básico nos garante a sobrevivência, o essencial define a nossa existência.
Cartas e cartões guardados como documentos que conferem veracidade a afetos, fotos amareladas que nos conduzem a momentos especiais, objetos que contam nossa história, nos remetem a amores vividos, a viagens sonhadas, livros mágicos, livros autografados, livros ainda não lidos, papéis com garatujas, corações, letras disformes, frases simples que nos lembram a infância dos filhos fazem parte do essencial. Na necessidade de partir, não cabem em nossa bagagem. São eles que nos farão lamentar o que deixamos, mesmo que sobrevivamos.
Não vivemos o Holocausto. Fugimos das águas que tomaram nossas ruas, nossas casas, nossas vidas. Nem todos puderam retornar. Viram suas vidas transformadas em entulho. Mesmo aqueles que retornaram, perderam a serenidade e a segurança que sentiam em suas casas. O mesmo Guaíba que encanta, amedronta.
Abandonar a nossa história é morrer mesmo vivos. Entender esse sentimento em guerras, catástrofes, em fugas de um país que deveria ser a sua pátria segura é respeitar a dor de quem perde as referências que construíram a sua identidade.
Anne Frank, extermínio de povos, ocupação de territórios, catástrofes ambientais não são o passado. O essencial continua sendo perdido. Isso nos faz pensar se teremos futuro.
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