Maria Avelina Fuhro Gastal
O calendário nos indica que hoje é 1º de julho de 2020. Começamos o segundo semestre de um ano que está em suspenso desde a segunda quinzena de março.
Começamos 2020 como todos os outros anos, pulamos ondas, brindamos, comemos lentilha, porco, vestimos branco, estabelecemos metas, traçamos planos, fizemos promessas. A expectativa é sempre de algo diferente, melhor. Sabemos que nem tudo se realizará e que quebraremos muitas das promessas já em janeiro, mas nos empenhamos em desejar.
Se desejamos um ano diferente, ganhamos. Para todos. No entanto, há diferenças alarmantes. Se devemos ficar em casa e manter o isolamento social, nem todos têm um teto para estar. Ou a casa abriga tantos que a maior possibilidade de distanciamento está nas ruas. Se podemos comprar alimentos sem sairmos de nossas casas é porque alguém se expõe para garantir nossa segurança. E muitos não têm como comprar nada. Fecharam-se as possibilidades de trabalho ou de qualquer bico que garanta a próxima refeição. Se cortamos gastos, outros perdem a possibilidade de sobrevivência. E ainda há quem não precise e se inscreva para receber seiscentos reais de ajuda do governo. Esses estão matando de fome crianças, adultos. E juízes coniventes aceitam o recurso para que os nomes sejam mantidos em sigilo. Caem as máscaras. Somos uma sociedade de hipócritas que está pouco se lixando para a dor do outro.
Deixamos de contar os dias que faltam, pois não temos ideia de quando chegará. Passamos a contar dias passados. Para muitos de nós o número de dias sem estar com que amamos, sem sair à rua, sem abraçar, sem beijar. Para muitos outros, além dessas faltas, o período já sem salário.
O tempo não parou. Nem a vida. Bebês nascem, pessoas morrem, árvores perdem as folhas, flores secam, o sol fica mais tímido, o céu mais cinza, a pele arrepia com o frio. Nós é que não estamos lá para viver. Vemos tudo pelas janelas e telas, mas não vivenciamos. Aqueles que por pura vontade, sem nenhuma premência ocupam parques, bares e restaurantes estão aumentando as voltas dos elos que nos mantêm nas nossas casas ou apressando a dor, quem sabe a morte, de quem não tem a opção de estar a salvo. De novo, uma sociedade de estúpidos. Provavelmente os mesmos que acreditam que não faz falta um ministro da saúde comprometido com a ciência.
Não sabemos o que encontraremos na nossa volta à vida. A Porto Alegre que trago na memória não existirá mais, deixou de existir nesses meses. Quantos terão falido, quantos desempregados? Quanto tempo para voltarmos a ter um mínimo de esperança? Pouco me importa se o Parcão continuará lá, se as flores irão ressurgir ou se as árvores encherão suas copas. Nós, privilegiados em uma sociedade desigual, estaremos apenas adiando viagens, compras, reforma da casa, troca de móveis. Apreciar parques, usufruir da natureza, bronzear nossa pele desbotada nos é garantido, enquanto para outros restam esgoto a céu aberto, falta de oportunidades, miséria e fome.
Como nos dizer cristãos e admitir tanta diferença? Como nos dizer humanos e ignorar tanto o outro? Não vejo que a pandemia esteja fazendo com que repensemos nossa sociedade. Temo sairmos ainda mais egoístas, querendo ter mais, aumentando o número de voltas em nosso próprio umbigo.
Nossa fome de possuir tem preço. E todos pagam por ele. Alguns pagam com a vida, não só nesta pandemia, mas em todas as outras que virão se insistirmos em viver como se não houvesse amanhã. Um dia não haverá.
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