Maria Avelina Fuhro Gastal
Era uma tarde de outono, como costumavam ser naquela época. Um dia fresquinho, talvez nublado ou chuvoso, pois não brincávamos na rua.
Margarida me ajudou a fazer a massa dos docinhos, deixando que eu mexesse, às vezes. Ela garantia que eu estivesse segura, mesmo em cima do banquinho para alcançar a boca do fogão.
Improvisei uma mesa com caixas de sapatos no chão do quarto que dividia com o meu irmão. Lenços de seda da minha mãe serviam de toalha. Os docinhos enrolados foram dispostos em linhas simétricas.
As convidadas especiais rodeavam a mesa, sentadas no chão. Além delas, meu irmão, a Margarida e a minha mãe participariam do grande evento.
Não lembro a data, mas eu havia decidido que era o dia do aniversário das minhas bonecas e a festa estava para começar.
Do nada, meu pai entrou em casa. Trazia na mão passagens para Pelotas. Iríamos em poucas horas, só ele ficaria em Porto Alegre. Meus pais conversavam baixinho, enquanto minha mãe tentava colocar nas malas tudo que pudéssemos precisar.
A festa das minhas bonecas foi esquecida. Saímos de casa sem tempo nem para o Parabéns a você. Elas ficaram lá, sentadas, frente àquela mesa que deveria ter sido festiva.
Não era Natal, Páscoa, Dia das Mães ou aniversário da minha avó. Não sabia que outro motivo poderia nos levar com tanta pressa a Pelotas. Fosse um pouco mais velha, teria pensado em alguma morte, mas tudo que me vinha à cabeça eram minhas bonecas abandonadas.
Ficamos lá um bom tempo, que pode ter sido horas, dias, semanas ou meses. De qualquer forma, uma eternidade para os meus cinco anos.
Assim como fomos, voltamos. Nenhuma explicação. Era como se a vida tivesse que ser assim e a nós, crianças, só restava acompanhar os mais velhos.
Na rodoviária de Porto Alegre um homem sem bigode esperava por nós. Não era o meu pai. Meu pai sempre usou bigode. Parecia com ele, mas não era ele. Não era o pai a quem tínhamos deixado aqui. E eu que estava com saudades dele, recolhi o abraço e me afastei, mesmo com a minha mãe garantindo que era meu pai.
A rua da minha casa também não era a mesma. Havia tanques nas esquinas e barricadas nos meios-fios.
Da mesa de aniversário das minhas bonecas, restaram caixas de sapatos empilhadas no canto do quarto. Os docinhos, meu pai deve ter comido, mas nunca me disse se estavam bons ou não. As bonecas sobre a minha cama pareciam estar chorando, pois tinham os rostos virados contra o colchão. Não havia clima para organizar uma nova festa.
Voltamos para o mesmo lugar, mas não para o mesmo mundo. Conversas sussurradas eram constantes entre meus pais e alguns tios e amigos. Já não brincávamos na rua. Para nos aproximarmos do edifício, meus pais tinham que apresentar documentos, os soldados do quartel na frente do edifício já não passavam a mão em nossas cabeças nem sorriam para nós. Estávamos em um mundo sisudo, repleto de cochichos.
À medida que crescíamos, algumas palavras captávamos entre as sussurradas. Ditadura, milicos, Tupamaros, desaparecidos, golpe. Não fazíamos delas nossa realidade, pois eram esvaziadas de sentido no nosso vocabulário.
Frente às perguntas, um aviso: Não repitam nada disso na rua, nem com amigos. É perigoso. Assim começamos a aprender a calar, a ter medo, a desconfiar.
Adolescência e colégio eram riscos adicionais. Os avisos de perigo tornavam-se constantes, enquanto assistíamos o desfile de militares na presidência do país. Comunistas, terroristas, aparelho não eram palavras proibidas desde que usadas seguindo o manual de ufanismo nacionalista. Golpe não deveria ser dito, ofenderia aqueles que viam como revolução e, quando ofendidos, não tinham limites para impor a sua versão.
Políticos, artistas, intelectuais que conseguiram sair do país não podiam voltar. O filho de um amigo do meu pai foi-se, sem que ninguém soubesse para onde e sem ter jamais regressado.
Por anos, mudavam as estações, mas o ar daquele outono tornava-se cada vez mais sombrio e arrastava-se sem que pudéssemos vislumbrar o seu fim. Tortura, choque elétrico, pau de arara somaram-se às palavras de uso restrito em casa. Meus pais não autorizaram que eu fosse com colegas de colégio para Buenos Aires comemorar o fim do ciclo ginasial. Eles temiam por tudo que eu ignorava. Eu os odiei por tudo que me cerceavam.
Já amamentava meu primeiro filho quando os primeiros raios de luz romperam aquele outono sombrio. Ainda fracos, mas constantes. Se fizeram na negociação de perdoar criminosos em troca do perdão de perseguidos. O acordo ganhou forma, aprendemos a relaxar sem perceber que o preço cobrado seria o esquecimento.
Aos 4 anos, meu filho ficou com os avós para que o pai dele e eu pudéssemos ir ao Comício das Diretas Já. Nenhuma festa, nenhum debut teve a intensidade daquele momento para mim.
Falávamos de política com menos receio. Minha segunda filha respirava ares de maior liberdade. Aos quase três anos, quando eu disse que deveria lavar os cabelos para tirar o cloro, ela respondeu, ofendida, “Não tenho Collor na cabeça, só Lula”.
Meus filhos foram votar comigo. Meu primeiro voto para presidente aos 31 anos, acompanhada pelo Eduardo, 10 anos, e pela Renata, quase 3 anos. Eles precisavam sentir que aquele momento era especial, não precisariam abandonar brincadeiras, omitir conversas, temer por manifestar suas opiniões.
Nós vivemos como se tivéssemos esquecido, acreditamos em novos ares e na sua perenidade. Eles fingiram ter esquecido, até encontrar um canalha que lhes trouxesse à vida novamente.
Assistimos a lenta marcha da tentativa de voltar. Acompanhamos todos os passos e todas as manifestações de desrespeito à vida humana. O monstro ganhava forma. E nós, paralisados e isolados por uma pandemia, temíamos por uma volta aos tempos sombrios.
Por quatro anos, aquele outono ameaçou voltar. Planejaram, arquitetaram, financiaram, convenceram, deram voz aos covardes que bradavam pelo retorno do terror.
Fui votar nervosa, temendo o resultado. Dessa vez, Alice, 8 anos, minha neta, foi comigo. Na minha família falamos sobre política de forma aberta. Discordamos em muitos pontos, mas a opção pela democracia é consenso. Após o resultado das eleições, ainda temíamos o pior. Não se tinha mais a certeza do respeito às urnas.
Em uma tarde de verão, arriscaram e atacaram as instituições, invadindo, quebrando, vandalizando os símbolos da democracia. Não conseguiram, mas mostraram que são muitos.
Vemos que aquele longo outono sombrio ainda nos ronda. O nosso silêncio alimentou o inimigo. Não dá para anistiar o imperdoável nem para ignorar monstruosidades. Elas precisam ser contadas para não serem repetidas, precisam ser conhecidas para serem reconhecidas como ameaças. Não há silêncio sem conivência. Se somos contra a tudo que aconteceu em nosso país, às perseguições e mortes por ideologia, à tortura, aos torturadores não podemos aceitar que sejam ignorados como se nunca tivessem existido. Existiram, torturaram, mataram e não foram punidos.
Temos que gritar antes que tenham sucesso em nos calar.
Os netos daquela menina que abandonou as bonecas merecem viver em um país livre, sem enfrentarem um novo longo período sombrio.
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