Maria Avelina Fuhro Gastal
Minha certidão de nascimento me coloca em Pelotas. Ela limita-se ao local onde, em determinado dia e ano, nasci. Tivesse nela um campo que indicasse pertencimento, eu seria de Porto Alegre.
Aqui disse as primeiras palavras, dei os primeiros passos, reconheci minha casa entre tantas outras, explorei, munida de baldinhos e pás, parques e praças, fiz amigos, explorei meus limites, transpus barreiras, aprendi a ler, descobri o mundo além das paredes da minha casa, me aventurei em ruas e avenidas, me apaixonei, me machuquei, entrei na faculdade, me casei, tive filhos, me separei, construí minha vida profissional, vi meus filhos saírem de casa, me aposentei, me tornei avó, me arrisquei a escrever e publicar. Cresci, adolesci, me tornei adulta, comecei a envelhecer sendo Porto-Alegrense.
A trajetória de vida vale mais do que o momento do nascimento. Familiares que me desculpem, em Pelotas me sinto estrangeira, Porto Alegre é o meu lar.
A cidade, de início, para mim era o Centro, que ainda não era Histórico. Na rua dos Andradas morei em quatro prédios, três deles com intensas memórias.
Primeiro no prédio em cima do cinema Cacique (nº923). Eu era muito pequena, não lembro de quase nada. Ali minha mãe engravidou do meu irmão, quando eu tinha 1 ano. Talvez ele não tenha morado ali, talvez tenhamos nos mudado antes, ou logo após, o nascimento dele, já não tenho a quem perguntar.
Do Edifício Luxor (nº515) me lembro bem. Primeiras amigas no prédio, primeiras lembranças da vida familiar, boas e ruins, muitas brincadeiras e brigas com o meu irmão. A partir de um determinado momento, memórias de tanques nas ruas, reforço da guarda no quartel em frente, emaranhados de arames obstruindo passagens.
Dali saía para conhecer um pouco mais do mundo, visitando tios na General Portinho e na Vasco Alves, indo para a escola, primeiro na General Bento Martins e, depois, na Jerônimo Coelho. Brincava nas praças do Alto da Bronze e da Alfândega, onde, uma vez por ano, me perdia e me encantava em meio aos livros. Circulava pelo Centro como se todo Porto Alegre só existisse ali.
Dois anos fora do Centro para descobrir que o mundo ia além daquele espaço. Petrópolis e Floresta ingressaram no meu mapa, de forma breve, até que retornei ao que me era familiar.
Edifício Marieta (n°745) acolheu uma pré-adolescente. Espinhas no rosto, revoltas surgindo, questionamentos aflorando. De bom, o novo colégio na rua Duque de Caxias, as amigas que fiz lá e até hoje tenho contato, a possibilidade de me locomover sem a presença dos meus pais me acompanhando. Outros tempos. Torci e vibrei pelo Brasil na copa do México, cantando “Eu te amo meu Brasil...”, sem perceber que os tanques, os quartéis, os emaranhados de arames forjaram com dor e tortura um sentimento de brasilidade que calava o povo.
Mais dois anos em um novo endereço. Higienópolis entrou no mapa. Não importava o quão grande fosse a casa, ela estava fora do que eu reconhecia como meu lugar. Por sorte, continuei no mesmo colégio. Aprendi a andar de ônibus. Porto Alegre se expandia, mas grande parte de mim permanecia no Centro.
No Edifício Serrano (nº721) vivi minha adolescência, com todas as primeiras vezes possíveis para a fase. Primeiras turmas de amigos, primeiras festas de 15 anos, primeiras saídas à noite, primeiras preocupações com a aparência e insatisfações com o corpo, primeiros planos para o futuro, primeiro combo namorado/beijo/amor/traição/dor/sofrimento/decepção.
Depois dos 17 anos nunca mais morei no Centro, mas voltei por mais de 40 anos, primeiro para terminar o colégio e, depois de algum tempo, para trabalhar por 30 anos na Assembleia Legislativa.
Estou impregnada do Centro. Mesmo tão diferente, hoje, ainda me aciona sentimentos diversos. Memórias boas, saudades imensas, tristeza por não mais encontrar os cinemas de rua que se misturam com a minha história.
A cidade se ampliou em mim. Bairros nobres, boêmios, familiares, periféricos compõem o mosaico da minha experiência de vida neste lugar que me tem.
Tanto olho com amor como olho com tristeza a Porto Alegre em que hoje vivo.
Dói ver as ruas tomadas por moradores que fazem dali suas “casas”, ignorados pelo poder público que só tem olhos para a construção de grandes empreendimentos, de gosto duvidoso, que empurra para cada vez mais longe aqueles que ousam não ser abonados. Uma cidade que trata como lixo trabalhadores pobres, na sua maioria pretos. Desesperador ver o verde perdendo espaço para o asfalto, as ruas perdendo os jardins para os muros e grades, as praças vazias por temor aos assaltos, as calçadas sem marcas de amarelinhas, sem crianças brincando. Desvio de dejetos humanos e de animais, temendo torcer o pé em calçadas descuidadas e em buracos centenários.
Me renovo ao caminhar pelo Brique, ao circular pelas ruas do Bom Fim, onde a vida acontece na rua, ao presenciar o pôr-do-sol, ao sentir o ar gelado do outono/inverno no rosto, ao acompanhar a posição do sol na minha sala ao longo das estações do ano. Ao pisar em tapetes coloridos tecidos com as flores dos ipes e manacás. Sei os espaços que me fazem bem e aqueles que me causam medo, repulsa ou revolta. Sou capaz de reconhecer no mapa da cidade que trago em mim os lugares aos quais pertenço e me sinto livre para ser quem sou.
Em uma convivência tão longa, impossível não haver desventuras e ressentimentos. Envelhecemos juntas. Nos dias mais sombrios, olho a passagem do tempo da cidade como olho a minha. Sobressaem-se as rugas e as construções descascadas, sem conservação, as dores no corpo e agonia de uma cidade suja, a proximidade da morte e o corte desenfreado das árvores. Nos dias generosos, encontro beleza no meu rosto maduro e nas transformações que aproximaram o Guaíba das minhas caminhadas.
Porto Alegre é o cenário da minha vida e coadjuvante da minha história. Nada me afasta daqui. Na cidade encontro lembranças, desafios e possibilidades. Diferente de mim, Porto Alegre também se reconstrói jovem. O risco é pensar na estética como único valor, desqualificando, apagando e matando o passado. Há se encontrar um novo jeito de se estar aqui.
Não me vejo em outro lugar. Quero sempre ir aonde for com a certeza de que é para cá que eu volto.
Porto Alegre me tem. é aqui que eu vivo em paz.* Quase sempre.
Título e referências inspiradas pela canção “Porto Alegre é demais”, José Fogaça.
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