Maria Avelina Fuhro Gastal
Meu novo normal ainda não conhece a rua. O que é bom, pois não sei o quanto normal ele é.
Nesta quarentena, que já virou “noventena” e pelo visto chega fácil a “centovintena”, percebo mais anormalidades em mim do que qualquer possibilidade de vida normal.
Convivo com um lado desonesto que está sempre traçando estratégias. Aprendi a engambelar a pulseira smart fit, aquela que eu tinha brigado em abril por marcar poucas calorias gastas em um dia de faxina (Constatações e (pirações) da quarentena 2). Antes de começar a limpar, seleciono treino em circuito e bombo em tempo de atividade e calorias consumidas. Justo, pois faço muito mais repetições de agachamentos, extensões, step, flexões ou qualquer outra possibilidade do que na academia. Mas minha enrolação não termina aí. Ao final, vou até o aplicativo do Magrass e marco mais de uma hora de atividade física. Com uma só tarefa, extenuante e pesada, cumpro dois objetivos do dia. Depois, vida mansa, livros e água fresca.
Sim. Voltei a conseguir ler, mas ainda não assisto filmes ou séries. Me dá uma inquietude. Neste novo normal, coisas que sempre amei são as mais difíceis de manter. Parece que estou traindo a vida, tendo prazer sem ela.
A possibilidade de desligar a câmera nas diversas atividades on line é libertadora. Faço os pés, removo cutículas das unhas das mãos, espremo cravos, limpo o teclado do computador com cotonetes, lancho, faço abdominais, vasculho Facebook e Instagram. Para aprender bastam os ouvidos. Sempre consegui prestar a atenção em mais de uma coisa ao mesmo tempo. Posso conversar com você e saber tudo que as pessoas do lado estão falando. Dádiva e castigo.
Atenção dispersa, mas efetiva (se é que possível esse binômio), e audição apurada são características minhas. Por isso escuto minha casa. E como geme. Do nada, estala daqui ou dali. Quase sempre à noite. Às vezes não consigo identificar de onde vem o barulho, mas ele é vivo. Hoje me peguei a pensar. Teria o Queiroz se escondido aqui? Já que ele tem o péssimo hábito de entrar na casa das pessoas sem permissão, permanecer nela como se fosse hóspede, quem sabe isso explicaria alguns dos barulhos que eu escutava na casa, mas andam silenciados.
Algumas coisas se repetem desde o início da quarentena. Mas parecem ter ganhado intensidade e volume. Por exemplo, agora são centenas de fios de cabelos castanhos que recolho pelo piso, roupas, travesseiro e passaram a ser milhares os fios grisalhos que nascem na minha cabeça feito praga no Egito.
Por vezes, algumas reações minhas me surpreendem.
Há alguns anos costumo me presentear no meu aniversário. Viagens, finais de semana na Serra, roupas caras, botas. Nada disso faria sentido este ano. Optei por um lençol térmico. Até aí tudo bem. Estranha minha reação quando ele chegou. Feliz ao extremo, apaixonada por ele, quase chorando de alegria em um dia de 28º.
Em uma das poucas noites frias que tivemos até agora, tão logo apaguei a luz e virei de lado para dormir, ouvi barulho de asas batendo. Ignorei. Ouvi de novo. Pensei: pássaros. Que pássaro bate asas à meia-noite? Morcegos! Lá fora. Um pouco mais e senti um peso tombar na minha cama, bem próximo a minha perna. Da cama ao banheiro, um pulo só, carregando junto o cabide de pé que fica na frente da cama. Controlada a taquicardia, decidi enfrentar a criatura. Cobertores, lençóis foram retirados, sacudidos e nada. Escondeu-se. Munida de rodo e lanterna, deitei no chão para investigar embaixo da cama. Nenhum vestígio. Só poderia estar atrás das cômodas. Arredei as duas. Já aproveitei para limpar atrás. Nem sombra. Mais uma olhadela embaixo da cama, por via das dúvidas. Agora nem pó tinha mais. Refiz a cama. Além de observar as dimensões perfeitas para lençóis e cobertores, tive o cuidado de sacudir tudo mais uma vez. Mais de uma. Finalizei com uma generosa baforada de inseticida por todos os cantos do quarto. Deitei e tossi muito. Hoje penso que talvez tudo tenha sido um delírio. Aquele tempo entre dormir e estar acordada. Vai ver nunca houve asas batendo, nem corpo tombando ao meu lado. Por via das dúvidas, continuo muito cuidadosa a cada limpeza e troca de lençóis. O pior é que não marquei tudo isso como circuito de exercícios. Perdi uma ótima oportunidade de burlar a pulseira e a contagem de calorias gastas.
Mas a mais inexplicável das reações prende-se a uma lagartixa. Ela habitava a minha área de serviço. A princípio, cada vez que eu entrava lá, ela corria. Depois, foi suportando a minha presença. Dividíamos o tanque. Ela ficava quietinha na borda e eu cuidava para não fazer movimentos bruscos, nem espirrar água. Toda manhã procurava por ela. Levei alguns sustos pela imobilidade dela. Temi por sua vida. Mas era apenas uma preguiça momentânea causada pela sensação de bem estar e pertencimento. Eu ficava feliz no menor movimento que me denunciasse vida. Me afeiçoei. Não cheguei a dar um nome a ela, mas era perceptível a confiança e o afeto entre nós. Na última quinta, dia 18 de junho, não a encontrei no tanque. Olhei por tudo e não a achei. Senti falta. Perto do meio dia deparei com a lagartixa encostada no marco da porta que dá para a cozinha. Imóvel. Tentei me convencer que apenas havia mudado de ambiente. Ao longo do dia, nada. Ainda ali. Na mesma posição. Constatei o óbito. Lamentei e me pensei responsável. Teria cometido um “tixicídio culposo”? Revi a posição dela e as possibilidades de um descuido meu. Não parecia ser o caso. A localização do corpo não indicava um esmagamento pela porta ou pelo meu pé. Morte natural? Teria ela tentado entrar para pedir ajuda? Jamais saberei. Precisava remover o corpo. Uma das minhas maiores dificuldades. Mesmo mortos, não me agrada a ideia de recolher com pá ou pedaço de papel qualquer animal, nem mesmo moscas, imaginem, então, uma lagartixa que não era uma qualquer. Só dia 20 enfrentei o sepultamento. Não poderia deixá-la ali, exposta como alimento para baratas.
Com tudo isso, restou uma preocupação. E, em função dela, faço um pedido a vocês. Mais noventa dias em casa, vai me lançar na primavera. Se continuar depois, enfrentarei o verão na minha casa. Apesar da extrema limpeza que ela adquirirá até lá, não ficamos livres de baratas. Se eu me afeiçoar a uma, o caso é sério. Então, se eu escrever nas Constatações (e pirações) da quarentena 23 minha relação mais íntima com uma delas, me socorram. Não terei sido ungida com a genialidade de Clarice Lispector, mas acometida de perda total da sanidade mental.
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