Maria Avelina Fuhro Gastal
Escrito em 13 de abril de 2019
Gosto de me pensar como uma flâneur. Traz certo charme e distinção. Mas, na realidade, caminho para perder peso e ganhar saúde. Depois de tantos anos caminhando, me apaixonei pela sensação de olhar por aí, observar as pessoas, a cidade. Meu gosto por caminhar já foi caso para pequenos atritos com amigas, já superados, quando as convenci de conhecermos Buenos Aires, Brasília e Paris a pé. Talvez tenha sido um exagero, mas vimos detalhes que em um metrô jamais veríamos. Por sorte, em Nova York minha filha aderiu a minha loucura e flanamos por lá, sem conflito.
Não preciso estar fora daqui para apreciar uma caminhada. Exploro Porto Alegre como se não fôssemos velhas conhecidas. Enxergo detalhes, situações e curiosidades em cada passo. Talvez com um pouco mais de dificuldade, pois tenho que dividir o olhar entre a vida ao redor e os buracos, excrementos e lixo pelo chão.
Duas vezes por semana vou e volto do Parque da Redenção caminhando para praticar Tai Chi. No último mês uma moradia embaixo do pontilhão da Avenida Getúlio Vargas com a Avenida Ipiranga, sentido centro bairro, chamou minha atenção. Um plástico branco e uma lona fechavam de forma ordenada um retângulo bem no vão inferior do pontilhão. Na ida só conseguia ver a estrutura externa, na volta observava o seu interior. Dentro havia uma estante pequena com três prateleiras onde estavam roupas dobradas e alguns livros. Acima um cano com cabides. No chão, um colchão de solteiro, tipo box, com lençóis perfeitamente estendidos e um travesseiro. Do lado externo uma cadeira de plástico, uma mesa pequena com um vaso em cima. Muitas vezes, vi um rapaz, jovem, varrendo o entorno daquele espaço.
Hoje cedo havia uma movimentação diferente ali. Três carros da Guarda Municipal, dois caminhões do Departamento de Limpeza Urbana e duas viaturas da Empresa Pública de Transporte e Circulação e mais nada da moradia. Tudo lixo. Um aparato do poder público municipal para um espaço ocupado por alguém, provavelmente, sem emprego, sem casa, sem saída. Ontem, não aqui, mas no Rio de Janeiro, prédios desabaram, soterraram vidas, em um local em que a prefeitura não chega, pois as milícias têm poder lá. Então, ergam-se os prédios, coloquem pessoas e rezem para que as suas casas não virem seus túmulos.
Há um descompasso desrespeitoso entre a ação do poder público e a realidade da população. Em algum momento, os menos favorecidos começaram a ser vistos como entulhos, lixos. O que mais me assusta é a conivência no nosso silêncio ensurdecedor.
Clique aqui para seguir esta escritora
Pageviews desde agosto de 2020: 280225
Site desenvolvido pela Editora Metamorfose