Tradução simultânea


Maria Avelina Fuhro Gastal

Quem lê, quem escuta, interpreta. Às vezes não basta, é preciso traduzir. Tradução simultânea do nosso idioma para o nosso idioma. Duvida?

Na Protásio Alves, na altura da João Guimarães, resiste um sapateiro. Na frente do estabelecimento há uma enorme placa indicando os serviços oferecidos. Entre vários, um chamou minha atenção: troca de feixos de bolsas. Se fosse feixe de bolsas até que seria curioso. Imaginem um conjunto delas colocadas em paralelo bem próxima uma da outra e amarradas a um graveto ou cabo de vassoura sendo trocado por outro feixe de bolsas que já não usamos mais. Difícil seria chegar até a sapataria carregando o feixe e, mais difícil ainda, percorrer o caminho de volta com um outro feixe de bolsas sem parecer desvairada.

Quando estagiária no Serviço Social do Hospital da PUC, recebi uma paciente encaminhada pelo serviço de ginecologia e obstetrícia. Multípara, HCG positivo, em crise de ansiedade e com comportamento agressivo, afirmando não estar grávida. A explicação dela era simples, “não é gravidez, tenho monopol”. Eu, inexperiente, 18 aninhos, tentava entender o que o monopol tinha a ver com a situação. Seria alguma receita contraceptiva que eu desconhecia? Já havia escutado várias, sem nenhuma confirmação de eficiência, pelo contrário, já que sempre me eram descritas quando constatada uma gestação. Bom, se em algum momento ouvirem de uma mulher que ela está com monopol, considerem a possiblidade de ela pensar estar na menopausa.

Em uma esquina da Dr. Timóteo há o anúncio de uma especialista em harmonização vibracional para todos os fins. Nesse caso, traduzir ou interpretar é um desafio enorme. Todas as palavras existem e estão grafadas corretamente, mas não faço a menor ideia do que querem dizer. Uma pista é que são utilizados cartas e tarô no trabalho. E acaba aí. A harmonização é individual? É recomendada para casais? E para patrão e empregados? Dá para harmonizar extrema direita com sociedade? Religião com respeito? Fome com cidadania? Capitalismo com miséria? Gremistas e colorados? Talvez estejamos perdendo o caminho para a paz mundial.

Globo News, naquele texto que fica correndo na margem inferior enquanto assistimos o noticiário: “rápido envelhecimento do Brasil pressiona sistemas de saúde e previdenciário.” Eu sabia. Colocaram algo na água. Agora está explicado. Como que, eu, adolescente nos anos 70, aprendendo que o Brasil era um país de jovens, poderia pensar que 50 anos depois os jovens seriam os velhos? Inadmissível. Meio século é pouco para planejarmos em cima de dados de realidade, então é super aceitável que não tenha havido políticas públicas que aliviassem a pressão na saúde ou previdência. O que é intolerável é o estrago que esse tempo fez na minha pele, no meu colágeno e na minha expectativa de vida. Como é possível se envelhecer tão rápido em apenas 50 anos a mais?

Têm horas que não há como interpretar ou traduzir o Brasil sem transformar tudo em um enorme palavrão.

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Maria Avelina Fuhro Gastal

E-mail: avelinagastal@hotmail.com

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