Maria Avelina Fuhro Gastal
“O que você diria, hoje, à criança que foi aos dez anos?”
Com uma ou outra variação, todos nós já nos deparamos com essa frase de suposta autoajuda nas redes sociais. Total perda de tempo.
Levamos décadas para ser o que somos. Construímos nossa identidade a partir de vivências, tentativas, acertos e erros. Com certeza, se falássemos algo à criança que fomos, não faria o menor sentido para ela. Seria mais um conselho chato de gente velha que pensa saber tudo.
E, ainda, em nada mudaria o nosso passado. Pior, se houvesse qualquer possibilidade de mudança, não afetaria um evento pontual, alteraria tudo o que vivemos. Se algumas coisas poderiam ter sido diferentes, elas modificariam tantas outra que queremos preservar.
Há duas possibilidades de se olhar o tempo. Em uma delas, hoje é o dia em que sou mais velha em toda a minha vida, na outra, hoje é o dia em que sou mais jovem no restante da minha vida, assim como o será amanhã e a cada dia seguinte.
Imagine-se dirigindo em uma estrada, mesmo sem curvas, e olhando fixamente pelo retrovisor. A chance de se acidentar é grande, dificilmente você seguirá na estrada se olhar apenas para o que está para trás e, ainda, não apreciará o caminho que há pela frente. A ré não é adequada para grandes trajetos.
Na condução de um carro o retrovisor é acessório que nos garante tranquilidade nas manobras. Assim deveria ser na vida, também. Se usado como recurso principal, que seja em um processo terapêutico que revisita o passado para desbloquear o presente e oportunizar vivê-lo sem correntes enferrujadas pelo tempo.
Para a criança que eu fui, não diria nada. Para a mulher que sou, digo, o tempo todo, para aprender a ouvir minhas vontades.
Quando tinha dez anos, fazia ballet, amava o jazz. Não tive coragem de pedir para trocar. Gordinha, sem graça, sardenta, cabelo “ruim”, desengonçada, feinha. O jazz não era para mim. E não foi por mais de 50 anos.
Hoje, gordinha, com alguma graça, ainda sardenta e, agora, enrugada, cabelo crespo, se não charmosa, pelo menos não mais desengonçada, bonitinha, encarei o jazz.
Óbvio que não chegarei à Broadway, ao Municipal ou ao Teatro São Pedro, nem mesmo ao Teatro do Sesc. Mas estou onde sempre quis estar, tentando dançar jazz.
Nem todos os movimentos consigo fazer, o joelho dói, o plié não tem a amplitude que eu gostaria, não levanto do chão com a graça de uma bailarina. Não importa. Exploro movimentos, ora contidos ora libertos, reconectando-me a um corpo que às vezes não reconheço como meu.
Mais do que dizer algo a quem já fui, quero ouvir as vontades abandonadas pelo caminho, poder perceber aquelas que ainda se mantêm em mim e dar vazão a elas, adaptando-as ao meu ritmo, às minhas condições físicas, ao meu tempo vivido e por viver.
A conexão desejável entre a criança que fomos e o adulto que somos é a possibilidade de brincarmos, rir e nos permitir acreditar que há muito para ser vivido com leveza.
P.S. Se sua vontade também é se arriscar no jazz, faça a aula gratuita do dia 30/09, 15:00, na Morada da Dança. Foi lá que comecei a viver meu sonho.
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