Quarent...ão+1


Maria Avelina Fuhro Gastal

Quem o conheceu crescido não entende o apelido, Alemão. Não traz na memória aquele menininho loiro, de olhos entre o azul, o verde e o mel, com cara sapeca e um sorriso ladeado que se abria mais para a direita do que para a esquerda, enquanto a cabeça pendia para o lado contrário.

Tão logo conseguiu se soltar das tiras do macacão que agarrava com firmeza para ter segurança ao caminhar, chutou uma bola. Com o pé esquerdo. Mas nunca foi canhoto. Pensou em ser jogador, se tornou médico.

Atravessamos os tempos construindo o que hoje somos.

Deixei de ser filha para ser mãe sem ter tido tempo de me tornar adulta. Aprendemos juntos a construir a nossa relação. O susto inicial, o medo de falhar, as cólicas, os palpites intermináveis cruzavam o nosso caminho. Passamos a nos descobrir nos momentos em que estivemos a dois. Tivemos que lutar por eles.

A força que encontrei para me fazer mãe veio dele. Da sensação de plenitude quando adormecia no meu colo. Da mão que se apoiava no meu corpo enquanto mamava. Do olhar que passou a se encontrar com o meu a cada amanhecer e que se entregava aos poucos ao sono em cada noite. Aos poucos, sorrisos acompanhavam o olhar. Reconhecíamo-nos como mãe e filho. Encontrávamos em nós ternura e confiança no que éramos capazes de ser um para o outro.

Ainda lembro dos bracinhos que me envolviam o pescoço, das tentativas de beijos com a boquinha grudada no meu rosto e deixando marcas de baba. A primeira risada dobrada, para mim um sinal de que era feliz por ser meu filho.

Merecia uma primeira graduação aos dois anos de idade quando esteve por dias e noites ao meu lado, riscando e rabiscando papéis, enquanto eu escrevia meu TCC. Foi companheiro, respeitoso e parecia entender que precisávamos nos concentrar. Quem precisava era eu. Ele poderia não ter aceitado. Tinha esse direito.

Cresceu embolado no meu próprio crescimento. Por vezes, faltou-lhe mãe. Sobrava universitária, dona de casa, filha. Eu deveria ter entendido os sinais. Que criança diz à professora do maternal que a palavra que a mamãe mais diz é “Apura”. Com três anos! Estava lá, nos cartazes dedicados a nós, no Dia das Mães, onde cada aluno fez um retrato da mãe através da comida e brinquedos favoritos e da palavra mais dita por ela.

Era pura emoção. Chorou muito pela morte da mãe do Bambi e em cada vez que assistiu ao Saltimbanco Trapalhões quando, na última cena, escorre uma lágrima dos olhos de uma cabeça de cavalo de brinquedo.

Recebeu a irmã com certo temor. Defendeu seu lugar, ocupando a cama do hospital bem grudado em mim. Afirmava não estar se sentindo muito bem e que era melhor ficar ali. Nada que o impedisse de visitar a cafeteria com frequência. O berço da Rê era empurrado para uma certa distância. Queria evitar que ela também ficasse doente. Mas nesse movimento havia delicadeza e um olhar de carinho, amor e cuidado que perdura.

Quase me enlouqueceu na escola. Mas equilibrava a indisciplina e o descompromisso com o pavor pela reprovação. Cumpria o mínimo, embora tivesse capacidade para o máximo. Correu atrás do prejuízo e hoje exerce a profissão que escolheu, sem ter desistido quando precisou ir atrás daquele máximo que sempre existiu nele.

Em fantasia, muitas vezes o perdi na adolescência ou no início da vida adulta. A cada saída na noite, entrada no mar, verão com os amigos, festa dos cem dias eu esperava pelo pior. Loucura. Quase o perdemos há dois anos. Loucura real. Superou, venceu e o tempo todo se preocupava com os outros.

Ele é assim. Tem um apego à família, um cuidado com os afetos que não se manifesta em grandes demonstrações, mas estão presentes no olhar, na presença, no jeito em que às vezes me abraça do nada.

Alemão, esse texto é pra ti. Se hoje não posso te abraçar, quero que saibas que aquilo que sou de melhor, teve início em ti. Me fizeste mãe, me fizeste avó. Sem o teu nascimento talvez eu nunca tivesse deixado de ser filha.

Quando pudermos estar juntos de novo, quero aqueles abraços do nada que sempre me fazem bem.

Podes me pedir aquilo que te fizer bem. Eu tentarei mais uma vez ser a mãe que mereces.


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Maria Avelina Fuhro Gastal

E-mail: avelinagastal@hotmail.com

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