Maria Avelina Fuhro Gastal
No início era apenas um retângulo que tinha como maior área a Rua da Praia e suas laterais, em um extremo a Rua Vasco Alves, no outro, a Praça da Alfândega. Meu mundo ainda não tinha nome, somente lar, segurança, tios, primos, balanços e escorregador.
A idade escolar empurrou um dos extremos além da Borges de Medeiros. Mais do que incorporar a rua Jerônimo Coelho e o Grupo Escolar Princesa Isabel ao mundo por mim conhecido, passei a entender que ele tinha um nome, Porto Alegre.
Porto Alegre era o meu lugar. Limites eram expandidos em passeios longínquos que nos levavam a Ipanema. Molhávamos os pés naquele que pensávamos ser rio, rolávamos na areia, retornávamos para o nosso retângulo expandido. Éramos felizes.
Um dia, para mim, do nada, me vi em outro lugar, que também era Porto Alegre. Por alguns anos aprendi que Petrópolis, Floresta e Higienópolis, mesmo distantes do que até então entendia como a cidade em que morava, ainda eram a mesma cidade, com outras cores, outras histórias, outros caminhos.
Por sorte, mesmo que por consequência de uma má administração e consequente falência, dei adeus à uma enorme casa nos altos da Cristóvão Colombo, para voltar a viver naquele retângulo que ainda habitava em minhas memórias. Vivi ali minha adolescência.
Foi nessa época que me entendi como porto-alegrense, mesmo não sendo, e percebi o quanto amava a cidade. Já a via além do meu mundo, conhecia muitos de seus caminhos, reconhecia muito de suas características, já me imaginava em seus muitos recantos vivendo a vida que estava porvir. Era, para mim, um Porto, alegre.
Deixei aquele espaço como lugar onde morava, mas nunca como lembrança e referência de dias inesquecíveis, por aumento da insegurança. O abandono do então Hotel Majestic, fazia da região palco de assaltos. Meus pais buscaram um lugar mais seguro. À Porto Alegre, juntava-se o sentimento de temor, até então desconhecido.
Na mesma época, ingressei na faculdade. O curso me levou para lugares que eram chamados de vilas, sem saneamento básico, sem iluminação pública, sem pavimentação, sem postos de saúde, sem condições dignas de vida. O Alegre, perdeu sua força. Enxerguei o descaso, a injustiça, a indiferença da cidade, a sua fúria desmedida em manter à parte e isolado aquilo que ela mesma criava, uma enorme população que não tinha o direito de viver os parques, as praças, as ruas da cidade.
Desde então, vivo com a cidade uma gangorra de sentimentos. Ao mesmo tempo em que o pôr-do-sol me encanta, a violência me assusta; em que os ipês floridos me conquistam, o preconceito me causa repulsa; em que os parques me enchem de energia, as podas desenfreadas me horrorizam; em que o Centro Histórico me tem, a especulação imobiliária me expulsa.
O Alegre de meu porto foi enfraquecendo, mas manteve a esperança. Até essa semana. Ao desencanto, medo, repulsa e horror somou-se a vergonha.
Como manter Alegre no nome de uma cidade que traz para o seu calendário um dia de comemoração à destruição, à tentativa de golpe, ao desrespeito à Constituição?
Não são os vereadores os maiores responsáveis por esse absurdo, nem o silêncio conivente do prefeito. A responsabilidade é nossa, do nosso voto, da cara que mostramos ao escolher nossos representantes.
Mesmo não sendo, ainda sou porto-alegrense. Carregarei a vergonha na minha história. O orgulho de escolher ser foi roubado de mim. Temo que daqui a pouco nada mais me reste daquilo que me fez escolher ser daqui.
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