Maria Avelina Fuhro Gastal
Tivesse aquele pequeno espaço as características próprias do nome que lhe foi atribuído nos condomínios, eu poderia ter me afogado. Como, apesar de ser chamado de eclusa, não há água, fiquei eclusada. Neologismo urbano para amenizar o fato de que restei enjaulada.
Para acessar a rua, uso a TAG no primeiro portão e devo esperar que ele feche totalmente para usar de novo a TAG e abrir o segundo portão. No primeiro, tudo bem. No segundo, não funcionou.
Fiquei entre duas “tegadas”, presa entre portões gradeados, em um espaço em que não cabe uma bicicleta de adulto.
Por sorte, eu assim achava, tinha o celular no bolso. Bastava usar o aplicativo do condomínio que libera acessos, além de permitir acompanhamento de toda a movimentação do edifício por câmeras que devem fazer a alegria dos fofoqueiros. App não funcionou.
Tentei manter o bom humor. Liguei para o zelador, pedindo ajuda. Estava no telhado e demoraria um pouco para descer. Tranquilo, afinal eu tinha ar e estava superprotegida das ameaças da rua entre dois portões que não abriam. Como as grades são vazadas, ainda podia acompanhar a movimentação e cumprimentar caso algum conhecido passasse. Quem sabe até bater um papo para me distrair enquanto esperava ajuda.
Apenas dois vizinhos tentaram sair durante o período em que eu criava raízes na eclusa. Não conseguiram. Estavam com pressa, me desejaram sorte, e saíram pelo portão de uma das garagens. Nele o aplicativo funcionava. Descobri que eu era capaz de abrir qualquer um dos portões de garagem, e são vários, o aplicativo só não abria a eclusa de moradores. Juro que sou moradora. Tento convencer o APP, mas ele me ignora.
Um dos neurônios que ainda não tinha sido contaminado pela raiva crescente, me ajudou a lembrar que eu poderia ligar para a tão eficiente empresa de segurança remota condominial. Busquei minha voz mais meiga e terna para informá-los sobre a minha situação. Juro que percebi uma risada contida na voz do atendente. Tentou acionar o sistema remotamente e, pimba, não funcionou. Mandariam uma equipe para me libertar. Antes, perguntaram se eu já havia informado ao zelador. Só aí lembrei dele de novo. Temi que tivesse despencado do telhado, mas eu não havia ouvido nenhum baque. Mais urgente salvar as antenas, limpar a sujeira dos pombos, varrer telhado do que me resgatar. Já estava me sentindo uma merda.
Comecei a perceber olhares curiosos dos transeuntes. Temi que me atirassem bananas ou amendoins. Tive vontade de começar a pular, coçar a cabeça, grunhir, mostrar a bunda e atirar cocô em quem passava. Meu instinto animal tomava conta e eu me solidarizava com os animais do zoológico. Vão todos viver suas vidas, não é porque me eclusaram que sou atração para vocês.
Um único vizinho, morador de rua, veio perguntar se estava tudo bem. Vontade de dizer que não, que esse mundo de grades não é justo, que estou surtando, querendo comer o fígado de quem inventou essa bosta toda. Sorrio, eu acho, e digo que está tudo bem, já estão vindo resolver.
Só aí o zelador aparece. Não tinha despencado do telhado, nem sofrido um mal súbito, apenas não tinha pressa. Tentou com a TAG dele abrir o portão. Nada. Sugeriu ligar para a segurança. Já liguei. Então, quando chegarem, me avisa. E saiu, livre. Continuei presa.
Trinta e seis minutos. Trinta e seis minutos que se igualaram aos quatro aos compreendido entre 2018 e 2022. Absurdos, intoleráveis, inacreditáveis, infindáveis.
Liberta, escolhi o caminho da rua. Caminhei respirando ares de liberdade, estava vivendo um novo primeiro de janeiro de 2023. Só me percebi ansiosa, de novo, ao me aproximar de casa. Escolhi entrar pela garagem. Temo estar sofrendo de stress pós-traumático. Só torço para que eu não comece a ratear e nem a queimar óleo por preferir o acesso dos carros. BRUMMM.
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