Maria Avelina Fuhro Gastal
Aos doze anos, escondia no meu quarto um caderno. Não era um diário, mas a descoberta dele seria mais bombástica do que qualquer revelação de uma teimosia, mentira ou briga entre irmãos. O texto que ele guardava não passava de uma lista para o futuro com o título Tudo que a minha mãe faz e não vou fazer com os meus filhos. Não sei que fim levou o caderno, nem lembro por quanto tempo eu escrevi nele. Dos deslizes da minha mãe, aos meus olhos, só lembro de um e que nunca repeti com os meus filhos. Quando ela queria terminar uma briga dizia uma expressão que me nego a repetir em respeito à memória dela. Claro que acabei com (ou pelo menos tentei) muitas brigas usando uma expressão adaptada: Agora chega ou Deu ou, ainda, Vai para o teu quarto. No entanto, tenho certeza de que devo ter repetido várias das coisas que como filha me era inadmissível, mas, sendo mãe, a perspectiva muda.
Independente das repetições, o que mais me intriga é, aos doze anos, me pensar como uma futura mãe. Sempre brinquei muito com bonecas, “ajudei” a cuidar do meu irmão quando nasceu, mesmo só tendo um ano e meio. Entre as maldades fraternas, eu me ocupava cuidando dele. A vida toda. Mas se as brincadeiras projetam teu futuro, então eu deveria ter sido balconista ou empacotadora. Passava os dias vendendo e embrulhando produtos para a família toda.
Ainda existe na nossa cultura um pensamento que liga o masculino à sexualidade e o feminino à maternidade. Sou de uma geração que já projetava uma carreira, mas não lembro de jamais ter questionado a opção de vir a ser mãe. E não me arrependo de ser. Mas daí a enxergar como algo natural, instintivo, há uma distância enorme.
Quando nos tornamos mãe? Ao engravidar, somos gestantes. No parto, parturientes. Nesse momento nasce o filho, mas a mãe não nasce junto. Mesmo que não tenhamos dado à luz, recebemos o bebê esperado em um longo processo de adoção como filho, mas nem esse tempo estendido além dos nove meses gera a mãe.
O bebê que recebemos é um total desconhecido para nós. E depende de nós. Precisamos reconhecer seus desejos, necessidades, desconfortos antes mesmo de conhecer nossa capacidade em cuidar dele. Tudo durante o puerpério, em um descontrole de emoções, sono atrasado, corpo disforme, seios doloridos, desorganização da vida familiar e da sua rotina. Esquecemos de nós, da mulher, da companheira, da profissional, de qualquer outra que tenhamos sido para abrir espaço para a mãe emergir.
Aos poucos, vamos conseguindo reintegrar nossos pedaços. Além do susto e do medo, percebemos o prazer de ter o bebê no colo, amamentá-lo, acompanhar cada biquinho, careta ou movimento e nos sentirmos felizes e encantadas por estar com ele.
Quando estamos perto da serenidade tão prometida no paraíso de ser mãe, precisamos retornar ao trabalho. Por um lado, queremos, e muito, pelo outro, voltamos a enfrentar monstros. A mãe que vínhamos aprendendo a ser já não basta. Temos que dividir os cuidados com outros, confiar em quem nunca conseguimos confiar totalmente, afinal o filho é nosso e só nós podemos reconhecer e suportar as suas necessidades. Junto a isso vêm febres, otites, amigdalites, viroses sem fim, quedas, machucados, hematomas, arranhões, birras, teimosias, intolerâncias alimentares, vômitos, diarreias e nós, além de mães, tentando ser médicas, enfermeiras, colchão, amortecedor, pacientes.
Seguimos, vamos tentando dominar o inesperado e surgem os anos escolares. Temas, desinteresse, conflitos com colegas, com professores, queixas, corpo mole. Juntamos às funções já existentes as de professora, orientadora educacional, recreacionista, motivadora. Mãe não é um único ser. São várias amadoras tentando encontrar o caminho mais curto ao objetivo almejado. Mesmo que a cada dia o objetivo mude.
Chegamos na adolescência, deles. Saudades das noites de febre, de pesadelos, de birras. Nessas eles estavam em casa. Nosso colo, chamego, carinho bastavam para que se tranquilizassem. Agora, a distância de nós é o maior desejo deles. Batemos cabeça, não sabemos o quanto permitir, o quanto endurecer. Já não temos certeza de enxergar neles aquilo que estão precisando. Eles omitem os sinais, não querem que nós percebamos. Às vezes, reencontramos o bebê quando buscam em nós conforto para alguma tristeza, mas, de novo, temos que reaprender a dar um colo que alivie, não mais a fome ou a cólica, mas a dor de crescer.
Quando se tornam adultos, ficamos com a sensação de que o tempo passado foi o mesmo que levamos para ler este texto até aqui. Temos em nós todas as idades e fases dos filhos presentes. E, mais uma vez, temos que reaprender a ser mães. A mãe que fomos em cada momento da vida deles está neles, mas elas já não são o que esperam de nós agora. Talvez nem precisem mais de uma mãe. Basta ser alguém com quem possam dividir memórias, com quem possam contar.
Hoje é meu quadragésimo dia das mães, trigésimo terceiro como mãe de dois. Ainda não estou finalizada. Continuo em construção. Talvez a maternidade seja um eterno balanço entre proximidade e distância. E neste dia das mães de distâncias por isolamento social, me sinto muito próxima a eles, pois os tenho em mim e sei que estou neles.
Talvez o que ainda falte seja eu buscar um novo caderno e listar coisas com o título Tudo que fiz e jamais deveria ter feito aos meus filhos.
Alemão e Rê, ser mãe de vocês é o que há de melhor na minha vida.
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