Maria Avelina Fuhro Gastal
Há alguns anos, em um dos períodos das tantas dietas que já fiz na vida, descobri a caminho do trabalho um Buffet de salada verde. Almoçaria naquele lugar, mesmo sem conhecê-lo. Perto das treze horas, voltei para procurar o restaurante que me salvaria de todas as tentações. Não consegui encontrar. Atravessei a avenida para ter a mesma visão que tive de dentro do ônibus pela manhã. Encontrei. Não o buffet, mas o Ballet Silvana Vernet.
Não sei se foi por resiliência, por fome ou por desespero, mas, naquela manhã, meus olhos leram, antes das nove, algo que não era consciente para mim. Foram delatores. Foram frestas por onde escaparam meu interior.
Palavras também denunciam.
Para você, o que representa o dia 1º de maio? Um feriado apenas? O Dia do Trabalho? Ou o Dia do Trabalhador? A escolha pode ser por ingenuidade, desconhecimento histórico, ideologia ou ignorância.
Se for só um feriado, aproveite. Lamento que o deste ano, que poderia ser um feriadão, tenha frustrado seus planos. A não ser que você não se importe com os outros, acredite que é só uma gripezinha, ou um exagero da mídia e dos órgãos internacionais de saúde, e tenha vivido o dia nos parques, no Gasômetro ou em carreatas exigindo que os outros se exponham. Para ser coerente, pelo menos desça do carro e faça uma passeata, bem próximo aos seus companheiros. Afinal, não dá nada. Mas nem continue lendo a partir daqui. Não lhe diz respeito.
Em 1886, em Chicago, no dia 1º de maio, milhares de trabalhadores foram às ruas para reivindicar melhores condições de trabalho, entre elas a redução da jornada de treze para oito horas diárias. Aconteceu nesse dia uma grande greve geral nos Estados Unidos. Os dias seguintes foram marcados por manifestações e conflitos entre policiais e trabalhadores, com mortes de ambos os lados e diversos feridos. Em 1889, em Paris, a Segunda Internacional Socialista criou o Dia Internacional do Trabalhador, a ser celebrado no dia 1º de maio.
No Brasil, a data entrou no calendário oficial em setembro de 1924 com o decreto do então presidente Arthur Bernardes de Souza, que estabeleceu o dia 1º de maio como feriado nacional destinado à celebração dos mártires do trabalho e confraternização das classes operárias. Getúlio Vargas passou a chamar de Dia do Trabalhador, mas a data perdeu o caráter de protesto e passou a ter um caráter comemorativo ao ser utilizada para divulgar a criação de leis e benefícios trabalhistas.
Dia do Trabalho ou Dia do Trabalhador são hoje tratados com uma indiferença de significado que atende a um projeto de sociedade. Na primeira opção, a valorização é do trabalho, da produção, do workaholic, da tarefa acima da realização, do ganho acima das condições. Na segunda, a valorização é do aspecto humano. Retoma a ideia de discussão das condições de trabalho e reconhece a legitimidade dos protestos. Não há o que comemorar. Há patrões que enxergam como Dia do Trabalhador e há empregados que veem como Dia do Trabalho. Não é a classe a que pertencemos que determina a nossa visão, embora seja uma forte influência, mas a forma como construímos a nossa visão de relações sociais e mecanismos de produção.
Eu escolho Dia do Trabalhador. Sempre escolherei pessoas acima do mercado, pessoas acima do lucro, respeito à vida acima da massificação. Acredito que reencontraremos o caminho para protestar e exigir melhores condições de trabalho e salários dignos. Não há dúvida em mim que possa escapar por uma fresta na escolha da palavra. Mas vivi minha vida profissional em submissão aos valores do trabalho. Jornadas absurdas, acúmulo de tarefas e responsabilidades, dedicação subjugada a valores centrados em uma sociedade do capital e das diferenças sociais. Somos complexos, antagônicos. Por sorte, também portadores de frestas que deixam escapar nossos conflitos e crenças. Usá-las para nos questionarmos e crescermos nos afasta da selvageria,
Olhos, ouvidos, boca, palavras podem revelar o que nem sabíamos estar escondido. Pode ser por desejo, por culpa, por fome, por crença, por ideologia, por caráter. As frestas por onde escapam revelam mais do que gostaríamos. Quando é dito “E daí?” para a morte de cinco mil brasileiros por COVID-19, revela-se (mais uma vez) o caráter. Quando você escuta, acha normal e tenta justificar, revela-me o quanto não te quero perto.
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