Maria Avelina Fuhro Gastal
Sexta-feira Santa. Ano, 2020.
Para o almoço, camarão com mix de cogumelos e quinoa, salada de alface e cenoura crua em pedacinhos coberta com sementes tostadas.
Não me sento à mesa. Escolho um canto do sofá para que o braço sirva de apoio. Termino de comer, lavo meu prato e a única panela usada para cozinhar. É o fim do almoço da Sexta da Paixão.
Sentar-me à mesa só teria sentido se nela estivessem meus filhos, nora, genro, neta, cunhada, sobrinhos. Mas a mesa tem estado vazia. Minha casa tem estado silenciosa. Não tenho pratos, panelas, talheres, copos para lavar. Não posso receber ninguém. Muito menos aqueles que amo.
Não pude deixar de pensar que, apesar de não sermos uma família religiosa, as duas datas mais repletas de símbolos e rituais entre nós são datas cristãs, Natal e Páscoa.
Nossos natais não acontecem necessariamente na noite de 24 para 25 de dezembro. Escolhemos uma data próxima onde todos possam estar e celebramos o Natal. Famílias crescem, filhos passam a pertencer a outras famílias. Não fazemos questão do dia certo, mas, sim, de estarmos juntos.
A Páscoa também tem seus rituais, ninho escondido, patinhas de coelho em farinha pela casa, frutos do mar na Sexta e no Domingo, e bolinhos de bacalhau.
Minha mãe fazia os bolinhos de bacalhau. Ou melhor, comandava a confecção dos tais bolinhos. Não há o que eu possa falar sobre isso que a minha filha já não tenha dito melhor em um texto dela publicado hoje no Facebook e Instagram. No final, vou colar, não o texto, mas o transbordamento de afeto que ela soube colocar em palavras. Desde que minha mãe morreu, não faço, apenas encomendo os bolinhos. Sei lá, parece que esse era um lugar dela que não me cabe.
Este ano não encomendei. Não haverá mesa cheia, nem procura pelo ninho ou patinhas de coelho pela casa. Mas ainda existirá todo o afeto que há entre nós e o recebido por nós. Meu pai, minha mãe, meu irmão permanecem vivos e estão presentes em cada um dos nossos rituais.
Sempre vivi, e ainda vivo, em uma família de afeto, carinho, respeito mútuo, solidariedade, acolhimento, sensível à dor dos outros. Podemos não professar nenhuma religião, não sermos dotados de fé, mas tentamos estar sempre perto do que Cristo, o homem, pregava. Talvez, por isso, o Natal e a Páscoa tenham tanto significado para nós.
Ano que vem, teremos bolinhos de bacalhau. Vou convidar minha família para fazermos juntos. Não terá o gosto dos da minha mãe, mas terá o significado de amor, união e superação. Ou, quem sabe, ela se junta a nós, enquanto meu pai e irmão disputam para ver quem roubará o primeiro.
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TEXTO DA MINHA FILHA, RENATA
Eu não sou uma pessoa religiosa. Eu cresci em uma família de ciência e de afeto. A gente é dos símbolos e das celebrações e há bem pouco tempo entendi que somos espiritualizados. Seja pelas lágrimas tímidas e coletivas dos natais, ou pelo que cada um de nós pede e agradece no silêncio, uns pelos outros.
O dia de hoje tem o cheiro do bolinho de bacalhau da minha vó. Feriado santo era desculpa pra estar junto, pra rir junto, comer junto, esse bolinho de bacalhau, que tinha um gosto inesquecível. Ela dessalgava, fazia carinho com as mãos enquanto desfiava, mandava em nós e em quem trabalhava com ela e, depois do ritual, quase que em um passe de mágica, surgiam os bolinhos.
Todo mundo comia pelo menos um antes deles irem pra mesa. Ela ficava braba porque gostava de fartura. Eu hoje chorei de saudade dela. Chorei de medo também, e por não poder estar em família pra esse almoço da paixão, pra lembrar dela e rir e chorar junto. Mas eu lembrei de falar com ela em silêncio, de agradecer por estarmos todos bem, por ter me permitido uma memória afetiva (ou tantas) com gosto de bolinho. Eu tenho sim esperança, de que tudo isso se transforme em uma revolução de afeto, no mundo! E de que a sexta santa seja de conexão e saudade e de que isso aqueça os corações dos que eu amo, e dos desconhecidos também. Obrigada vó! Na próxima sexta santa estaremos todos juntos aqui embaixo, lembrando do teu bolinho! Eu tenho sim esperança
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