Maria Avelina Fuhro Gastal
Em 18 de março passado, saí do aeroporto, embarquei em um taxi, entrei em casa às 23:50, e nunca mais saí. Começava minha quarentena pós-viagem. Eu voltara para uma realidade desconhecida. Em uma semana fora, o mundo havia mudado.
No caminho até em casa, fui lendo no celular tudo que encontrava sobre a pandemia do coronavírus, agora entre nós.
Seguindo as orientações dos sites que havia acessado, deixei a mala e a mochila logo depois da porta, tirei os tênis, liguei para os meus filhos, tirei a roupa, fui para o banho, lavei os cabelos, cortei as unhas, tirei os brincos. Apesar da minha aflição, deixei tudo na porta até o dia seguinte. Antes de dormir, passei álcool gel no celular, nas chaves, voltei a lavar as mãos e fui para a cama. De cabelos molhados mesmo. Na situação, dos males o menor.
No dia seguinte, acordei para os meus quatorze dias de suspense. Tentei viver o lema dos Alcoólatras Anônimos, “mais 24 horas”. Cada dia sem tosse, sem febre, sem dor no corpo, sem coriza seria uma nova chance de vida.
A operação desmancha mala ocupou toda a manhã. As roupas, os tênis e os chinelos foram lavados, até os sem uso na viagem. Todas as necessaires, todos os brincos higienizados. A mala e mochila, desinfetadas com álcool gel e colocadas no sol por três dias antes de voltarem para seus lugares no armário. Três longos dias para quem gosta de tudo em ordem.
Aos poucos fui me dando conta que, mesmo após a quarentena, eu não veria minha família, meus amigos. Viveria em isolamento social. Pela primeira vez, questionei seriamente se não deveria ter me casado de novo. Passou.
Entrei na rotina de estar sozinha.
Passei a fazer minha comida, a limpar a casa, a reorganizar meus dias. Nem me passa pela cabeça começar a passar roupa. Odeio. Contive a vontade de colocar os armários abaixo, redobrar, reetiquetar, reorganizar. Vou deixar para daqui a pouco, quando já estiver pelas tabelas por estar isolada.
Com a impossibilidade de sair ou de receber alguém, passei a prestar mais atenção nas picuinhas caseiras do dia-a-dia. Algumas constatações:
1. O pó caseiro tem um processo de criação espontânea. Tão logo passo o pano úmido, ele retorna.
2. Além desse processo, ele deve seguir alguma força como a do movimento das marés ou o de rotação da Terra. Sem nenhum motivo aparente, acumula-se em lugares aleatórios, sem nenhuma lógica para mim.
3. Só perdemos cabelos que não são brancos. Nos montes de cabelo que junto diariamente no banheiro, nenhum é branco. De onde concluo que no final desse período serei uma grisalha careca.
4. Jamais escolha para o piso do banheiro cerâmica marfim.
5. Embalagem abre fácil deveria trazer manual de instruções. Abre fácil para quem, cara pálida? Só não rasgo com os dentes porque não posso lavar a boca com sabão e beber álcool gel.
6. Cadeira de rodinhas em piso de tabuão, sem o tapete entre elas, pode te derrubar. Duas vezes, até agora.
No meio das constatações, o primeiro susto. Na terça-feira seguinte à minha chegada, acordei meio travada. Dor na lombar pra valer. Se a crise durasse como a última, teria seis meses de dor, travamento, sem fisioterapia. Nunca a distância entre mim e o que caía no chão me pareceu tão intransponível. O que fosse para o chão, lá ficava. E parecia que tudo ia. Se continuasse assim, teria que passar a viver no assoalho, na horizontal, pois corria o risco de ter tudo que eu precisasse lá. Apesar do calor, me abracei, sentei, me acomodei na bolsa de água quente, fervendo. E vá alongamento. Reduzi os seis meses a seis dias, sempre melhorando.
Na quinta-feira, no meio da dor da lombar, o segundo susto. Cinco espirros seguidos, acompanhados de outros tantos espaçados. Termômetro a cada meia hora. Nada de febre. E mais espirros. Outra vez termômetro. Intercalando as duas ações, já pensava em respirador, em planos e desejos que não realizaria. Esqueci que tenho alergia. Segundo meu filho, ao mundo. Espirro e me coço muito. Pânico. Meus olhos coçam o tempo todo. Lava a mão, coça os olhos, lava a mão, coça os olhos, lava a mão, coça os olhos.
Mais 24 horas e tudo havia passado. Menos a coceira nos olhos. Retomei minha rotina, ainda adequando os movimentos à dor que já era menor.
Na última quarta-feira, primeiro de abril, que eu deveria ter levado a sério, precisei fazer compras. Liguei para a fruteira e para um fornecedor de sementes e farinhas especiais. Entre as frutas e verduras solicitadas, quatro pés, enormes, de alface. Nunca pensei que alfaces consumiriam meu dia. Despenquei os pés, lavei folha por folha, enchi duas bacias da cozinha com água, coloquei clorofina, deixei as folhas de molho por duas horas. Lavei folha por folha, de novo, e coloquei por mais quarenta minutos em nova água com clorofina. Lava folha por folha, novamente, mais quarenta minutos em água com vinagre. Lava, agora tudo junto, de qualquer jeito, pois já quero jogar as alfaces pela janela. Põe no escorredor, tapa com um pano limpo. Duas horas depois, põe na bacia de tirar a água, onde cabem poucas folhas de cada vez, faz o movimento para girar, fico com o braço doendo, penso que é bom para a musculatura, me dou conta que vai haver diferença entre o braço direito e o esquerdo. Estendo um pano limpo na bancada, coloco as folhas secas ali, cubro com outro pano. Aperto, de leve para secar bem, troco os panos, deixo as folhas ali por mais uma hora. Finalizo colocando-as em sacos herméticos para o consumo depois. Tudo isso e tenho alface para, no máximo, oito refeições. E um monte de bacias e panos de louça para lavar. Vou repensar minha ingesta dessa hortaliça.
Cometi um erro. Fica a dica: nunca peça produtos de locais diferentes no mesmo dia. A fruteira trouxe pela manhã. Recebi na área de serviço, coloquei tudo no tanque, higienizei, pus no sol o que era possível, passei álcool nas mãos, diversas vezes, lavei as mãos, diversas vezes, passei álcool na torneira do tanque, no cartão de débito, na chave, no trinco da porta, tirei a roupa ali mesmo, coloquei na máquina, limpei o piso da área, fui para o banho. Os produtos naturais foram trazidos à tarde. Recebi na área de serviço, coloquei tudo no tanque, higienizei, pus no sol o que era possível, passei álcool nas mãos, diversas vezes, lavei as mãos, diversas vezes, passei álcool na torneira do tanque, no cartão de débito, na chave, no trinco da porta, tirei a roupa ali mesmo, coloquei na máquina, limpei o piso da área, fui para o banho.
Enquanto escrevo este texto, os ovos estão de molho na água com clorofina para depois serem lavados e colocados na geladeira. Ficaram por três dias em local afastado, dentro da caixa de papelão, para que, se houvesse esta merda de vírus ali, morresse. Só hoje abri a caixa para higienizar os ovos. E limpei o local em que a caixa estava.
Ontem, dia 02, tive uma preocupação descabida. Como faria para lavar o sabão que uso para lavar as mão? Por sorte, um amigo forneceu dados concretos para me tranquilizar. Talvez por ter ficado preocupado quando eu contei para ele que, na noite anterior, havia lavado as nervuras do desentupidor de pia com uma escovinha de dentes e passado álcool gel, no desentupidor. A escovinha foi para o lixo.
Prevejo uma futura crise. Quando tiver que atacar os armários e etiquetar o que ainda não tem etiquetas na minha casa, faltará o refil. Não tenho onde comprar. Fui pega desprevenida.
Até lá, limpo, cozinho, escrevo, leio, faço aulas de inglês, de pilates, de Tai Chi, de ritmos, de zumba, de GAP (glúteos, abdômen e pernas) on line. Participo dos grupos de escrita por Skype, Zoom ou Hangout. Troco mensagens com amigos pelo whatsapp, vejo e falo com minha família por vídeochamada.
Quero os beijos, abraços, e o convívio. Mas fico e ficarei em casa. Vou estar viva quando tudo acabar para poder mostrar a cada uma das pessoas da minha vida o amor que tenho por elas. E o quanto me fazem falta.
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